Um helicóptero passa zuncando por sobre a casa. Ela nem imagina quem poderia ser, então, continua fazendo o ponto de tricô mais complicado do Universo. Nada podia tirar sua atenção, mas aquele ruído, estava agitando seu pensamento. E, mais uma vez, ele passa, mas desta vez parece tão próximo que ela chega a pensar que vai aterrissar em seu quintal, já que o telhado está longe de ser um heliporto. Com a curiosidade aumentando aos poucos, mas ainda controlada, ela continua dando as laçadas, resmungando, apreensiva, para não perder o ponto.
O som se distancia e ela se concentra no tricô. Que ótimo! Só mais umas 10 laçadas e seu cachecol começa a se tornar realidade. Ainda está curto, mas bem adiantado. Ao todo devem faltar uns 30 centímetros pra concluir o trabalho, que, se der certo, será o primeiro de muitos que virão… e sua loja poderá, realmente, sair do papel, quer dizer, loja não, a portinha que herdou de sua avó confeiteira. Na época, a polêmica se instalou porque alguns familiares queriam que ela seguisse a culinária, mas não houve jeito, sua praia é mesmo o artesanato, especificamente o tricô! De repente, seus devaneios são interrompidos pelo som do helicóptero. Zangada, ela coloca as agulhas e o projeto de cachecol na cestinha de vime e vai até a janela. Uau! Como dizem, está um céu de brigadeiro! Azul anil, cintilante, sem qualquer nuvem, e o vento trazendo um aroma de baunilha. Ela respira fundo e quando olha para cima de novo, vê um cesto descendo do helicóptero, que se aproxima, lentamente, de seu quintal. As árvores envergam, a grama se achata e sua feição se torna cada vez mais aterrorizada! O que é isso, pergunta ela. Um ataque inimigo? Mas qual inimigo? Estou sempre na minha, nem tenho saído de casa, ando tão reclusa produzindo meus cachecóis!
Irritada, ela aperta os olhos para tentar ver quem se aproxima, mas não consegue… miopia é isso, à distância todos são um só… borrão! Ahahaha… que bom que ela ainda consegue rir de si mesma num momento de tensão como este. Com o medo falando mais alto, ela corre até a área de serviço e pega uma vassoura de piaçava, pelo menos, pode tentar dar umas pauladas, caso seja necessário se defender. O instinto de sobrevivência, quem sabe, a orientará na hora certa, afinal, ela nunca deu nem um catiripapo em ninguém, quanto mais pauladas.
De vassoura em punho, ela tem os olhos pregados no cesto do helicóptero, que paira sobre seu quintal. Quem será? Será que errou de endereço? Eu não estou esperando ninguém pelos ares, nem que um homem caia do céu pra mim… ahahaha. Rindo de nervoso, ela agarra o cabo da vassoura com força e dá um gemido, daqueles bem sentidos. Não acredito, isso é hora de uma farpa resolver espetar meu dedo? Se fosse só espetar, mas pela dor aguda, deve ter enfiado na pele, mas agora não posso pensar nisso, aguenta aí dedo, tenho que descobrir o que quer essa visita inoportuna. Neste momento, o helicóptero baixa mais um pouco, provocando uma enorme ventania, que faz com que seu lenço de cabeça se desamarre e saia voando pelo quintal, sorte que foi contido pelo galho de uma de suas árvores. Pelo menos, não se perdeu por aí. A cesta aterrissa, delicadamente, no gramado e ela fica impressionada com o que vê. O leitor deve estar pensando, um ET! Não, não parecia um extraterrestre, mas pela beleza poderia ser definido como “de outro mundo”.
Com um sorriso enorme no rosto, ele sai do cesto com um envelope azul em uma das mãos e uma mochila na outra. Sem conseguir segurar a curiosidade, ela pergunta, com a voz trêmula: quem é você? Eu te conheço? Mais um sorriso iluminado se abre, marcando covinhas encantadoras no rosto dele. Você me conhece? Sou fruto de sua imaginação! Como assim? E o helicóptero? Também! Não estou entendendo, por acaso, essa farpa no dedo e meu lenço agarrado na árvore são minha imaginação? Não fique nervosa. Eu não estou nervosa, só quero entender o que está acontecendo! Será que minha vizinha de quase um século de vida me deu um bolinho batizado hoje pela manhã? Claro que não! Não tem nada claro pra mim, aliás, tá tudo nublado. Não estou entendendo… peraí… cadê o helicóptero? Ele abre os braços, encolhe os ombros e dá um sorriso sem graça.
Ao fundo, a voz de sua mãe interrompe a conversa. O som da televisão está tão alto que parece que esse helicóptero tá sobrevoando nossa casa! Abaixa isso, menina! A mãe aparece na porta da sala segurando a forma do famoso bolo de maracujá e ela fica estarrecida, não pela sobremesa que exala um aroma delicioso pelo ambiente, mas pelo fato de tudo aquilo ter sido… Desculpa, mãe, não percebi que a TV estava com o som tão alto. Como consegue se concentrar no tricô desse jeito? Que cara é essa, menina? Nada... só minha imaginação fértil atacando de novo! :)
* O delicado e despretensioso desenho que ilustra esta crônica encomendei do meu irmão Gé (Gerson Donato)! Obrigada pela gentileza e parceria ❤️