terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Como sair do frio congelante para o calor escaldante e sobreviver

Quando Cleonice e Alcebíades tinham acostumado a sair de casa com três calças, cachecol, luvas, gorro, botas e um sorriso congelado no rosto, eis que chegam as festas de final de ano e eles precisam voltar aos trópicos. 

– Eu só queria que família e amigos mudassem pra cá. Facilitaria tanto nossa vida, mas ninguém se dignou! 

– Ah! Alcebíades, você acha que as pessoas todas vão mudar a vida delas por nossa causa? 
– Claro que não... só nossa família e os amigos mais queridos. 

– Simples! Agora, deixa de reclamar e venha comigo, precisamos arrumar nossas malas. 

– Arrumar as malas? Você não ouviu a Clodomira dizendo que está quase 40 graus? Nem temos roupa pra isso... 

– A Clodomira disse sobre a sensação térmica... dentro de casa deve estar uns 35! 

– Ah! Que alívio! 

– Ahahaha... não seja irônico. Então, vamos economizar tempo e paciência... não vamos levar malas, só minha bolsa e uma mochila com documentos e remédios. 

– Mas e se acontece alguma coisa e a gente tem que fazer uma conexão? Você já viajou tantas vezes e ainda não aprendeu que precisa levar uma muda de roupa na bagagem de mão pra garantir nossa dignidade caso o avião tenha algum problema? 

– Calma... eu sei... por isso falei da mochila. Não tomamos tantos remédios assim pra encher uma mochila grande... pensei em colocar uma nécessaire com os remédios e uma muda de roupa pra cada um... não está bom? 

 Só uma dúvida, Cleonice! Qual muda de roupa você está pensando em colocar na mochila, se estamos num freezer indo para forno? 

– Não seja exagerado... vou colocar umas camisetas de manga curta e uma bermuda que você deixou de usar há alguns anos. 

– Querida, como uma bermuda que não uso há anos pode garantir minha dignidade? 

– Ahahaha... mas você tá impossível, hein? 

– Será que eu entro nessa bermuda? 

– Você não engordou, nem emagreceu, Alcebíades, é claro que você entra na bermuda! E não se preocupe, quando a gente chegar lá, compramos algumas peças de verão. 

– Sua calma pra voltar à chapa quente me assusta... não sei como consegue manter a tranquilidade quando estamos prestes a torrar os miolos! 

Cleonice vai para o quarto rindo, enquanto o marido afunda na poltrona, pensando nos próximos dias no país tropical. 

Na hora do chá, os dois se esbaldam com pães, torradinhas com geleia, tortas doces e salgadas. 

– Essa mesa está incrível, querida. Acepipes de todo tipo e esse chá... que benção! 

– Acepipes! Adoro quando você fala essas palavras... 

– Quer que eu fale no seu ouvido antes de dormir? 

– Ahahaha... vai ser um prazer! 

– E tá rindo por que, então? 

– Fiquei imaginando você sussurrando acepipe no meu ouvido... será que funciona? 

– Deixa de ser previsível, Cleonice! As palavras são muito poderosas e, dependendo da situação, podem abrir as portas do prazer! 

– O que será que tinha nesse chá, hein? Trocamos de marca... será que é isso? 

– Ahahaha... como você sabe ser desagradável quando quer, Cleonice! 

– Ahahaha... você ficou tão animado de uma hora pra outra que achei que fosse alguma 
substância proibida contida nesse chá... marca nova... sabe como é. 

– Eu sempre estou animado, você é que gosta de jogar água fria... 

– Ahahaha... tá bom... tome seu chá... precisamos nos apressar nos preparativos... a viagem é daqui dois dias! 

– Tenho 48 horas de alegria, então? 

– Não seja rabugento! 

No dia seguinte, Cleonice aparece meio desanimada na sala. Alcebíades para de ler o jornal e fica por alguns minutos olhando para a esposa. 

– O que foi? 

– Ah! Você tem razão... não sei se quero voltar para o forno? 

– Ahahaha... concordou comigo? O mundo está em perigo! 

– Bobo! Mas você tem razão, será que conseguimos voltar a ficar de pernas de fora em público? 

 Os dedos dos meus pés estão apavorados com a possibilidade de terem que se apresentar ao ar 
livre... 

– Aí vejo vantagem... pelo menos, você vai ter que cortar as unhas do dedão! Ultimamente, parece que durmo com uma águia! 

– Ahahaha... era pra eu ficar bravo, mas não consegui... só rindo mesmo! 

– Quer que eu mostre minha canela arranhada? 

– Não, deixe pra mostrar a canela quando aterrissarmos na boca do vulcão! 

– Ahahaha... melhor mesmo. 

– Só me diz uma coisa... você viu a temperatura que temos hoje? 

– Vi... 10 negativos! 

– Agora, olha quanto tá fazendo no hemisfério sul... 

– Eu vi... 40 graus positivos! 

– Admiro sua calma... 

– Fim de ano... tempo de festa... anime-se! 

– Ahahaha... Eu queria que você visse a sua cara de arrasada tentando me animar. 

– Eu tava pensando... 

– Aí está o erro, querida! Não pense... porque se a gente pensar, desistimos antes de marcar a viagem! 

– Tenho que concordar com você... mas lembrei da alegria das festas! 

– Prefiro não pensar... 

– Ahahaha... por quê? 

– E você ainda pergunta, Cleonice? Depois que a prima inventou que todo mundo tem que cantar pelo menos uma música naquele bendito karaokê, as festas viraram um tormento! 

– É mesmo... eu tinha esquecido do momento gritaria desafinada promovido pela prima Anabel! 

– Isso se chama amnésia seletiva... preciso treinar mais... 

– Ahahaha... não brinca com essas coisas, Alcebíades! O que eu quis dizer é que evito lembrar do que me constrange. 

– Bela técnica, mas se eu usar, vou ficar sem memórias dessas festas... 

– Você está muito rabugento, hoje! Amanhã, é nossa viagem, procure melhorar o humor! 

– Do jeito que você fala, parece até que meu mau-humor é tão poderoso que é capaz de derrubar o avião! 

– Para de falar essas coisas! 

– Desculpe... lembrei que você tem medo de avião! E como consegue ficar tão calma e animada arrumando as malas? 

 Autocontrole! Aprenda! 

Chega o dia do embarque. Depois de responder a inúmeras mensagens de amigos e parentes, Cleonice guarda o celular na bolsa e se ajeita na poltrona do meio. Na janela, Alcebíades olha para o horizonte como se estivesse em sofrimento. 

– O que foi? Que cara é essa? Quem vê, pensa que está indo pra forca... 

– Forca não, forno! 

– Eu já disse que é melhor a gente abstrair essa mudança brusca de temperatura. Isso só faz a gente ficar ainda mais ansioso... 

– Só se for ansioso pela volta pra casa! 

– Ahahaha... você bateu o recorde essa semana, hein? Três dias seguidos de mau humor! 

– Tá bom! Vou tentar ver algo de bom... sorvete! 

– Isso, querido! Adoro tomar sorvete! 

– Mas acabo de me lembrar que debaixo de um sol de 40 graus não tem graça... derrete antes de chegar à boca. 

Cleonice faz uma careta para o marido. 

– E a sua cervejinha no quiosque? 

– Aí você me deixa feliz! 

– Tá vendo como tem seu lado bom? 

– É, mas lembra da vez em que ficamos sentados no quiosque tomando cerveja e queimei os pés
Tive até febre! 

– Queimou os pés e teve febre, porque é teimoso... eu passei protetor solar nos meus a cada meia hora... você não passou nem quis que eu passasse porque não gosta da meleca... conclusão... 

– ... três dias sem conseguir dormir, mancando e com uma marca que saiu uma década depois... 

 Ahahaha... mal-agradecido. Com meu creme pós-sol consegui curar o seu estrago em dois dias! 

– É verdade, mas não quero correr o risco...  

– ... de gritar mais do que uma gata no cio, cada vez que eu encostava minha canela nas queimaduras durante a madrugada? 

– Você sempre engraçadinha... 

– Obrigada, amor! 

– Agora, voltando às maravilhas do mundo em ebulição... o que mais podemos pensar que não seja sorvete derretido lambuzando nossa barriga e queimaduras no quiosque? 

– Ah! Tem o mar... lindo... as ondas quebrando na praia... 

– Lindo, concordo! Mas nem diga quebrando que lembro de sua tia mergulhando na arrebentação e literalmente arrebentando a prancha daquele menininho... eu nunca ouvi um choro tão alto como aquele... o moleque podia se candidatar a sirene de ambulância! 

– Ahahaha... não seja insensível... era uma criança... tão pequenininho. 

– Ele devia agradecer que sua tia não arrebentou com ele mesmo! 

– Ahahaha... do jeito que você fala parece que minha tia é assim pesada... muito pelo contrário... e a prancha era daquelas de isopor! 

– Pior do que isso, só aquele dia que resolvi jogar bola com seus sobrinhos na água... 

– Ah... aquelas bolas grandes e coloridas! Acho tão divertidas! 

– Mas você lembra que eu já estava há pelo menos uma hora jogando pra lá e pra cá, quando resolvi diversificar o saque e mandei a bendita bola pro alto-mar? 

– Ahahaha... O pai do dono da bola faltou te encher de porrada... 

– O cara não sabe beber... naquele sol, tava cozido e cheio de cerveja e sei lá mais o que na cabeça e veio querer me aloprar... derrubei o babaca na água mesmo! 

– Pois é, mas o salva-vidas pensou que você tava querendo afogar o esquentadinho. E pra explicar que foi um mal-entendido? 

– Sorte sua que ficou na praia... os caras nos levaram até o posto policial e eu tive que explicar, porque o pai do moleque estava com a cara cheia e não aguentava nem ficar em pé, além de ter tomado uns bons goles de água quando caiu... 

– Como é que acabou esse episódio mesmo? 

– Episódio é ótimo! É melhor parar de ver séries... 

– Nem vem... 

– Ahahaha...  brincando... depois de resolver no posto policial ainda tive que comprar uma bola nova pro moleque e colocar o pai dele na ducha pra curar a ressaca! E você ainda diz que sou antissocial! 

Cleonice dá um beijo em Alcebíades. 

– Meu antissocial preferido... 

O avião levanta voo e os dois adormecem assistindo ao mesmo filme. Quando desembarcam nos trópicos, uma intensa programação os aguarda. 

– Ah! Que delícia! Sinto como se fosse um frango rodando naquelas máquinas... 

 Uau... até fiquei com água na boca agora... 

– Quer ir direto pro hotel? 

– Ahahaha... bobo! Pensei num frango mesmo... e com farofa! 

– Insensível! 

– Belo casal... um antissocial e uma insensível! 

Neste instante, um grupo de pessoas começa a gritar o nome dos dois. Familiares e amigos agitando o saguão do aeroporto. 

– Essa viagem promete! 

Alcebíades olha pra Cleonice com cara de dúvida. 

– Será? 

Os dois se aproximam do grupo e recebem abraços, tapinhas nas costas e seguem para a casa de um dos parentes. Quase um mês depois, o casal embarca de volta pra casa. O voo é bastante tranquilo, eles estão bronzeados e trazem no rosto um misto de satisfação por mais uma visita ao forno e alívio por estarem de volta ao freezer! 

Passadas as primeiras horas no aconchego do lar, eles se esbaldam à mesa do chá, em meio às recordações. 

– E aí? O que achou do forno este ano? 

– Ah! Você sabe que eu gosto de variar, Alcebíades! 

 Ahahaha... sei, mas não fui eu que entrei no quarto no segundo dia de estadia na fornalha lamentando as assaduras! 

– Não seja cruel! Esse maiô que eu comprei foi a maior cagada que eu fiz... 

– Olha que se a gente pensar, vamos encontrar coisa pior! 

– Ahahaha... tudo bem! verdade é que eu nunca imaginei que minha virilha ia ficar vermelha como a cara da prima Eustáquia depois de dormir no Sol, sem passar protetor solar no rosto! 

– Até eu que não sou dos mais cuidadosos, sei que passar protetor no rosto é imprescindível até em dias nublados, quanto mais quando o sol parece ter triplicado de tamanho! Eu realmente não sei onde uma pessoa está com a cabeça quando faz uma coisa dessas! 

– Não dá pra entender mesmo! Só sei que ela passou aquela noite toda gemendo com a cara enfiada em uma toalha gelada, tentando amenizar o estrago. Agora, no meu caso, o mormaço foi o culpado! Fiquei sentada embaixo do guarda-sol, protegida, repassando o protetor solar a cada meia hora e pra quê? Para costura de um maiô arrancar sangue da minha sensível virilha! 

– Ahahaha... parece nome de filme pornográfico... a ninfomaníaca da sensível virilha! 

– Ahahaha... não quero rir, mas você é dose... ninfomaníaca! 

– E digo mais, você não pode colocar a culpa totalmente na costura vagabunda do seu maiô... eu te avisei pra não sentar naquela esteira de palha, porque ia te machucar... você nem me ouviu e depois eu que aguentei... 

– Aguentou? Como é que você fala isso na minha cara? 

– Não adianta ralhar! Eu cuidei de você, fiquei passando pomadinha de bebê na sua excelentíssima virilha e a noite ficou só nisso mesmo... paguei os pecados! 

– Você queria que eu ficasse sensualizando com a virilha assada? Sou sexy, mas existem situações que sem chance. 

– Ahahaha... concordo... vamos mudar de assunto! 

– Claro! E o que você me diz daquela dancinha constrangedora que você protagonizou com seu tio? 

– Que dancinha? E que tio é esse? 

– Ahahaha... esqueceu? Vou refrescar sua memória, querido! Fim de noite, temperatura em clima de chapa quente, você e seu tio Bernardo resolvem cantar no famigerado karaokê da prima Anabel! 

– Espera aí, conta direito essa história! Quem resolveu cantar e me arrastou pra palhaçada foi meu tio, que já estava trançando as pernas... 

– Mas como você é cara de pau... e você tava o quê? Se me disser agora que não estava com a cara cheia de cerveja, vou começar a achar que você realmente gosta de dançar daquele jeito e disfarçou que estava alto pra ninguém saber de suas habilidades corporais. 

– Isso aqui tá parecendo telefone sem fio... aquela brincadeira de criança... 

– Não precisa me explicar o que é telefone sem fio... mas chega de enrolar... eu só queria que me dissesse como um cara tão sem jeito pra dançar como você conseguiu fazer aquelas acrobacias carregando o tio como se ele fosse a primeira bailarina do Bolshoi? 

– Ahahaha... a gente só sacolejou um pouco, a plateia que estava mais bêbeda que nós dois juntos e aplaudiu nossa singela apresentação! 

– Enquanto eu assistia, só lembrava de você e seu mau-humor dias antes da gente embarcar para o forno! 

– Ah! Você sabe como eu sou, prefiro ficar na minha. Mas já que estava longe de casa, sem minha rotina, em férias... por que não aproveitar e extrapolar um pouco? 

– Vou cobrar essa animação mais tarde, hein? 

– Ahahaha... nem precisa cobrar, minha sensível virilha! 

– Para com isso! Você vai acabar me chamando assim perto dos outros... se fizer isso, encho sua cara de porrada! 

– Pelo jeito é só a virilha que é sensível... ahahaha. Já que você está tão animada narrando minha estripulia nos trópicos, gostaria que tivesse essa mesma desenvoltura pra relembrar o dia na sorveteria... 

– Ah! Quando tivemos que levar a criança aí tomar sorvete na taça, com guardanapo à vontade, e 
água mineral no copo de vidro pra ele não chorar na praia quando o picolé derretia? 

– Não mude o foco da conversa! Quer saber? Fui mesmo numa sorveteria, cansei de pagar sorvete e ver metade dele derreter barriga abaixo. Tá reclamando por que, querida? Você foi junto e ainda pediu calda extra! 

– Ahahaha... claro... se é pra sair da praia e enfrentar fila, quero tudo o que tenho direito... 

 O seu direito era sorvete com calda, calda extra foi por conta de sua gula! 

– Não seja mão de vaca, Alcebíades! 

– Ahahaha... então, voltemos ao que interessa. Que cantada foi aquela, hein? Se eu fosse tudo que você diz, eu tinha quebrado a cara do babaca, deixado a sorveteria em pedaços ainda tinha derramado todos os potes de cobertura extra no chão. 

– Violento, desumano! 

– Ahahaha... eu disse que se eu fosse como você diz, mas como sou um cara civilizado... 

– Civilizado?  

– Civilizado sim... eu queria ver se uma mulher chegasse perto de mim naquela saliência toda... você ia gostar? 

– Claro que não! 

– Ah! Que ótimo! Mas parece que sendo você o alvo da cantada, tudo bem! 

– Eu não disse isso, não ponha palavras na minha boca... ahahaha... 

– E ainda fica rindo na minha cara. 

– Ahahaha... eu achei tudo tão ridículo que nem me importei. Só depois quando voltamos pra praia tive vontade de xingar o otário! 

– Mas na hora ficou brava comigo... fui defender você e o que eu ganhei? 

– Não fala assim... você precisava... 

– Claro que precisava... 

– Chega de recordações do alto forno. Abre a janela! Quero sentir o vento frio invadindo o ambiente. 

– Está doida? Lá fora está nevando, oito graus abaixo de zero! 

– Ué? Mas você reclamou tanto que tava escaldando lá... 

– Mas também não quero congelar aqui! 

– Então vamos pra sala? A gente assiste a um filme e depois... 

Nesse momento, Cleonice dá uma série de espirros de assustar criancinha e sorri satisfeita. 

– Pensei que não ia parar mais! E depois eu é que sou exagerado! Mas o importante é que, seja na geladeira ou na churrasqueira, mais uma vez sobrevivemos às temperaturas extremas... somos heróis! 

– Eu diria que estamos mais pra anti-heróis... 

– Ah! O que importa é que congelando ou escaldando, temos o nosso charme! 

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