terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Eu posso! Por que não? - PARTE 3

Adão liga a TV e, mesmo sem prestar atenção no jogo, consegue disfarçar comentando lances quando Amália pergunta o placar. Na manhã seguinte, a ansiedade tira os dois da cama antes do despertador tocar. Amália por causa do dia de festa na ioga. Adão pela curiosidade de reler com calma seus cadernos de infância. 
– Hoje, a louça do café é sua, amor! Vou me trocar, não quero me atrasar pra aula. 

– Pode deixar.  disse que vou tirar o dia para deixar quintal e terraço tinindo, mas antes prometo a cozinha brilhando! 

– Poderoso!  

Amália se troca rapidamente, dá um beijo no marido e sai apressada. Adão lava a louça, olhando pela janela, mas nenhum sinal do faisão com cabeça de pelicano. 

– Antes de cuidar da grama e do terraço, vou pegar meus cadernos. Preciso aproveitar a ausência de minha Amália. Afinal, nem sei se algum dia vou contar essa história pra ela. 

Acomodado em sua cadeira de balanço, no terraçoele folheia um dos cadernos e para em uma página manchada de tinta. 

– Nossa, que desleixo! Deixa eu ler. Hoje, foi complicado. Só consegui escrever agora, às onze horas da noite. E pra completar, minha caneta estourou e manchou tudo, até meu pijama. Amanhã, mamãe vai querer me bater. Mas o que quero escrever mesmo é que vou conseguir voar, mesmo com todo mundo me dizendo que isso é coisa de maluco. Tenho certeza que com a ajuda de minha super-ave, vai dar certo. 

No final da página, a ave aparece dando um voo rasante. 

– Nossa... e ela está sorrindo! Como naquele dia aqui no jardim. Estou ficando preocupado. Desenhar e inventar histórias com bichos e super-heróis na infância é normal. Mas por que isso voltou a esta altura do campeonato?  

A cada página lida, Adão fica ainda mais surpreendido com tantas histórias que ele nem lembrava de ter escrito. E começa a tentar encaixar cada uma das lembranças como se fossem peças de um quebra-cabeça. 

– Mas quando será que eu deixei de sonhar assim, hein? Sempre tive a imaginação fértil, mas por que perdi isso pelo caminho? 

E, de repente, lembra que nem começou a cuidar da grama e da limpeza do terraço. 

– Caramba! Preciso começar a fazer o que prometi pra Amália. E ainda quero ler mais um pouco antes que ela chegue. 

Quando começa a cortar a grama, ele sente como se estivesse sendo observado. Mas continua, porque tem pressa. Grama cortada, ele volta ao terraço e se joga na cadeira de balanço. 

– Canseira! Pelo menos, essa parte está resolvida! 

Nesse momento, um suspiro chama sua atenção. Adão olha para a jabuticabeira e eis que lá está sua companheira da infância. 

– Bom dia! 

– Não achei esse bom dia sincero! O que aconteceu? Por que essa simpatia, humano? 

– Porque lembrei de algumas coisas... 

– Você não lembrou de nada, só encontrou seus antigos cadernos de anotações... 

– Como você sabe? 

– Sou fruto da sua imaginação de criança... 

– Só não entendo uma coisa: sou adulto, porque voltou a conversar comigo? 

– Voltei porque nunca te deixei. Você, sim, me esqueceu... 

A ave bate as asas e, pela primeira vez, Adão consegue vê-la em ação. O voo é meio desengonçado, mas é um voo! Ele fica entre encantado e desapontado. 

– Eu não esqueci... quer dizer, continuei com vontade de voar, mas... 

– Mas! Vocês humanos adoram dar desculpas, quando não têm coragem de lutar pelos sonhos. E adoram lamentar. Saiba que essa mania de reclamar, nos enfraquece... por isso, a cada dia tenho mais dificuldade de voar. Quanto mais você se distancia do menino que foi, quanto mais você duvida de sua capacidade de realizar seus sonhos, mais difícil ficam meus voos. 
Sem dar chance de resposta e de um pedido de desculpas de Adão, a ave some por trás da jabuticabeira. 

– Por favor, volte aqui... vamos conversar! 

Ele corre pelo quintal, olhando para o alto, sem perceber a fileira de pedras que divide o gramado do jardim e cai de cara no chão. 

– Ai... depois dessa é melhor eu entrar... meus joelhos estão ralados... ai... meu nariz... será que quebrei?  

Adão pega os cadernos e vai para o quarto. Depois de vê-los acomodados no fundo da caixa em segurança, vai para o banheiro e quando olha para o espelho, surpresa. 

– Ué... nem parece que cai de cara no chão, pensei que tinha sentido gosto de terra na boca... e meus joelhos? Não estão ralados? Como assim? Agora mesmo estavam... 

Adão entra embaixo do chuveiro de roupa e chinelos. Fica ali por alguns minutos e quando abre os olhos, está nu. 

– Mas eu tenho certeza que entrei de roupa... espera aí... deve ser esgotamento... preciso descansar. 

Ele se enxuga rapidamente, joga a roupa suja no cesto, deita na cama e logo pega no sono. Em seu sonho, Adão está no terraço da casa dos pais... ele tem oito anos e brinca de bater pênaltis com seu time de futebol de botão. É verão e ele está de férias da escola. 

– Vamos ganhar essa disputa, agora! Gol! Somos campeões... desculpe goleiro, mas esse é meu time. 
E agora comportem-se, vou guardá-los juntos na caixa e não quero discussões, nem brigas! 

O menino Adão olha para os lados para se certificar de que não há ninguém por perto e pega seu caderno de anotações. 

– Ah! Hoje, eu vou pedir pra minha super-ave me ensinar a bater as asas... acho que é um bom começo. É assim que um voo começa... e é assim que vou conseguir. 

– Tudo bem, aluno? 

– Oi... eu estava pensando em te chamar agora... 

– Não precisa, chamar, querido... basta pensar... seu sonho é meu sonho... vamos juntos... 

– Juntos sempre! 

– Será, meu pequeno? 

– Claro que sim! Você é minha melhor companhia, amizade sincera! 

Nesse instante, a ave tira de suas próprias asas um par para Adão, com um suporte elástico que ele veste nos braços. 

– Pronto! 

– Deixa eu acertar um pouquinho... equilíbrio é tudo! 

Preparados para a primeira aula prática, a ave se afasta para tomar fôlego e dá instruções ao menino. 

– Abra as asas delicadamente e comece a mexê-las bem devagar. Fique no mesmo lugar, só balançando suas asas, certo? 

– Assim? 

– Isso mesmo, com mais leveza. Observe como bato minhas asas e faça o mesmo. 

O menino acompanha a ave sorrindo. 

– Agora, fique aí quietinho e veja como levanto voo. 

– Ah! Que lindo seu voo... suas asas ficam tão grandes abertas... parecem tão leves. 

– E são leves! 

A ave pousa ao lado do menino e tira o suporte de asas de seus braços. 

– Ah! Mas já? Eu não vou... 

– Não! Vamos ter que fazer outros exercícios no chão. Ainda demora um pouco pra te levar para os ares, querido! 

– Quero voar... 

– Preciso que qualquer vestígio de medo saia de seu coração, criança! Para voar, basta amar e ter coragem! 

– Você me acha muito medroso? 

– Não, você é bem valente, mas precisa acreditar mais em seu sonho... precisa evitar que pessoas sem coração diminuam sua confiança... precisa deixar a opinião dos outros de lado. 

– Prometo que vou acreditar com todas as minhas forças! 

– Então, entre porque está escurecendo e sua mãe vai ficar preocupada... outro dia voltamos aos treinos... 

– Quando? 

– Você saberá... boa noite! 

E antes que o menino pudesse responder, a ave levanta voo. 

– É tão elegante voando... quero voar sorrindo como ela! 

– Quer voar sorrindo? Quem é ela, filho? 

– Oi, mãe! Quero voar como as aves... elas parecem estar sempre sorrindo. 

– Só você, Adão! Eu não sei de onde você tira essa vontade toda de voar! E sua bicicleta? Porque você não pensa em pedalar? 

– Porque andar de bicicleta não é meu sonho! 

– Pare de sonhar com coisas inatingíveisfilho! 

– Sonhos são sonhos, mãe, cada um tem o seu. E o meu é aprender a voar! 

Ela parece desistir de tentar convencer o filho. Os dois entram na casa e a mãe tranca a porta 

Neste momento, ele acorda do sonho, com o barulho de Amália entrando em casa. Assustado, ele senta na cama tentando lembrar. 

– Ai... preciso escrever antes que esqueça. 

Ele levanta rápido, pega um bloco e uma caneta no criado-mudo e entra no banheiro. 

– ADÃO! 

Ele escreve o mais rápido que pode, tentando não esquecer os detalhes. Arranca as folhas do bloco e guarda dentro de um livro. Respirando aliviado, Adão se joga na cama no momento em que Amália entra no quarto. 

– Tudo bem? 

– Tudo... fiquei com um pouco de dor nas costas depois de cortar a grama e resolvi deitar um pouco. 

– De pijama? 

– Eu  de pijama? Sei lá, acho que a canseira era tanta que meu cérebro achou que era noite... 

– Ahahaha... tá bom! A festa estava ótima! O almoço foi demais... 

Adão lembra que nem almoçou e nem limpou o terraço. 

– Você almoçou? 

– Não... quer dizer, comi alguma coisa, mas minhas costas realmente me derrubaram. 

– Vou tomar um banho... depois posso deitar ao seu lado? 

– Claro, amor! Quero saber tudo do seu dia! 

Amália joga a mochila no chão, dá um sorriso e vai correndo para o banheiro. 

Os dois passam a tarde conversando, deitados na cama. 

– Agora, chega de descanso, tenho vários cachecóis para tricotar! Quer ficar deitado? 

– Vou só relaxar mais um pouco e já te encontro na sala, tudo bem? 

– Claro... descanse! 

Amália sai do quarto apressada e em poucos minutos já está em meio a seus novelos de lã, cheia de energia para honrar as encomendas. Adão senta na cama e pega o livro onde guardou as anotações. 

– Vou reler... espero não ter esquecido nada importante. 

Ele começa a ler, como se revivesse o sonho. E começa a tentar entender as entrelinhas daquela história que voltava de sua infância. 

– É isso... as pessoas faziam questão de diminuir meu sonho, mesmo as que mais me amavam, como minha mãe e meu pai. E me forçaram a encarar o mundo de forma absolutamente objetiva... estudar para arrumar um bom trabalho e pronto! E a ave exótica que eu criei é o símbolo de tudo que sonhei na infância e que aceitei deixar lá, esquecido. Por quê? 

Com os olhos brilhando de emoção, Adão pega a caixa em cima do guarda-roupa e abraça os 
cadernos como quando era criança. 

– Vou reler todas as anotações, preciso me reencontrar. Eu sei que na infância meu sonho era voar, mas agora percebo que o que eu queria mesmo era seguir minhas vontades, mas acabei fazendo só a vontade dos outros. 

Adão passa as próximas horas mergulhado nos antigos cadernos, enquanto, na sala, Amália cochila depois de tricotar o primeiro dos cachecóis. Ficam assim a tarde toda. 

– É isso! Quando digo que meu sonho de infância, e de vida, sempre foi, é e será voar, as pessoas me olham como se eu fosse maluco. Na verdade, o que quero é voar por aí, não necessariamente batendo asas físicas, mas imaginárias! Eu sempre quis conhecer o mundo, mas acabei aceitando o que minha família impunha... trabalhar, comprar uma casa e só. Isso pode até ser importante, mas não é o essencial! Como diz aquele livro famoso: o essencial é invisível aos olhos... e os sonhos são muito mais profundos do que os insensíveis e práticos de plantão supõem. 

Adão guarda os cadernos e as páginas onde anotou seu sonho e vai para a sala, tentando não fazer barulho. Ele não quer acordar Amália, que continua cochilando abraçada ao cachecol. 

Ele vai até o terraço, o sol ainda está no horizonte. Quando pensa em sentar na cadeira de balanço, vê a ave perto da jabuticabeira. Adão vai ao seu encontro e, pela primeira vez, consegue acariciar as penas coloridas e leves de sua companheira de infância. 

– Finalmente, você entendeu o recado! Eu sabia que você ia ser um ótimo aluno. Se quiser voar batendo as asas que fiz pra você, posso me apresentar esta noite quando você pegar no sono... basta você querer! 

– Eu quero! Deve ser uma sensação indescritível! 

– Será! Mas só dará certo se você prometer que não conta pra ninguém... assim, posso vir te ver quando sentir saudades. 

– Mas por que não posso contar? Nem pra Amália? 

– Desculpe, mas não! Este é um sonho só seu... somos uma dupla... se você contar, vou enfraquecer até desaparecer... e você não me verá mais! 

– Por favor! Não desapareça... quero continuar nossa amizade! 

– Ótimo... então, voe pelo mundo com Amália, mas não conte a ela sobre mim. Nossas aventuras pertencem à sua infância... ao menino que vive aí dentro de você. E quando quiser voar, me chame... estarei sempre aqui para apoiá-lo, afinal, sonhos são sagrados! E devem ser sempre respeitados! 

– ADÃO! 

Ele se assusta, mas olha sorrindo para a porta da sala. 

– Já vou! 

Quando vira de volta para a jabuticabeira, a ave sumiu. 

– Cadê você? 

Ele ouve um bater de asas distante e a voz suave da ave. 

– Vá com sua mulher, mas lembre-se este é nosso segredo! se quiser voar, me chame quando adormecer! 

Ele entra na sala, ainda encantado com suas redescobertas. 

– Vamos fazer um café? 

– Mas você não quer jantar? 

– Não! Vamos fazer um lanche! 

– Ah! Aceito... estou tão cansada que nem gosto de pensar em ter que cortar temperos e cozinhar. 

– Vem, vamos pra cozinha... você arruma a mesa... quero de um tudo... ahahaha... manteiga, geleia, pães, bolo, torta... o que tiver! 

– Ahahaha... pode deixar! 

– Vou fazer o café... ferver o leite e tamos aí! 

Os dois lancham, conversando animadamente. E depois de ficarem horas escolhendo qual assistir, adormecem na primeira meia hora do filme. 

Adão sempre se perguntou o que significavam os sonhos. Será que são assim tão objetivos ou são rastros do nosso verdadeiro caminho? E quando diz caminho, ele quer dizer razão de existir! E por acaso a razão de existir de Adão é sua vontade de voar como os pássaros? Claro que não! O que ele quer, quando sonha em voar, é conhecer o mundo, conhecer o sonho das crianças crescidas, que insistem em impor datas especiais, momentos perfeitos, atmosfera ideal para que ele aconteça. E o que ele descobriu, voltando à infância, é que não há hora mais apropriada para realizar sonhos do que agora! Basta coragem! Mas cadê a coragem das pessoas que se escondem atrás de metas, rotinas cansativas repletas de conquistas materiais, amigos virtuais e futuro garantido? Para Adão, o que importa mesmo é a descoberta do porquê estamos aqui, além de escrever, cantar, pintar paredes, tricotar cachecóis, vender água de coco na praia ou pastel na feira. Nossa função no mundo tem que ser maior do que parece... tem que ser a de agregar, fazer amizades, cuidar uns dos outros, ser feliz e tentar fazer o maior número de pessoas felizes. Sua conclusão é que as pessoas precisam abrir as asas e voar atrás do que verdadeiramente coloca um sorriso em seu rosto! 

– O que tinha naquele café, Adão? 

– Ahahaha... tinha sonho, amor, vida, alegria, prazer... 

– Não brinca! Não pode ser! Eu  vendo você voar! Com asas e tudo! 

– Se você está vendo é porque acredita em sonhos! 

– Pra onde você vai? 

– Vem comigo! 

– Como? Não tenho asas como as suas! 

– Preste atenção... suas asas estão aí, basta você querer! 

– Ah! Até parece... 

– Se você acreditar, elas vão aparecer... 

De repente, Amália sente algo nas costas e quando vê está batendo asas enormes. 

– Viu? Vem, amor! 

– Não posso... 

– Não diga que não pode antes de tentar! 

Amália emociona-se quando seus pés saem lentamente do chão e ela levanta voo. 

Adão respira fundo, abre os olhos e sorri vendo Amália dormindo ao seu lado na cama. 

– Acreditar, amor! Este é o segredo! Eu posso voar! Por que não?

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