quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Vida é presente

O dia está meio nublado, abafado e agora começa uma chuvinha que pede pelo menos uma capa... e olha que tem gente que tem estilo até pra isso. Acabo de ver um homem, de seus 60 anos, com uma capa de chuva do Batman... sim... com o símbolo estampado nas costas e o capuz com as orelhas do famoso morcego. A capa é transparente, por baixo ele veste terno e o melhor de tudo é que ninguém em volta se importa com isso. Talvez porque as pessoas não estejam de folga como eu aqui observando a correria da manhã ou porque tem dia que bate uma maturidade no povo e fica cada um na sua mesmo. 

O fato é que estou sentada nessa cafeteria, vendo a chuva e o entra e sai de pessoas, que brincam com as atendentes e pedem aquele café”, combustível pra começar bem o dia e se preparar para o trabalho ou a falta dele. 

E, de repente, uma cena lá fora chama minha atenção e eu me transporto para a chuva novamente. Atravessando a rua, com um guarda-chuva imenso amarelo, uma avó de bengala e seu neto com alargador de orelha, topete e um enorme cuidado ao conduzir a velhinha que chega a emocionar. 

Quem são eles? Na realidade, não sei. Mas na minha imaginação, são dona Emília e Cássio. Uma avó cujo único limite é a bendita bengala. Uma senhora que enfrentou e enfrenta até hoje os membros de sua família que adoram destilar boas doses de hipocrisia, intolerância e preconceito. E mesmo assim continua firme, fazendo o que quer, a hora que quer, com quem quer. É viúva, teve um casamento absolutamente feliz, mas se recusa a envelhecer triste... sempre diz que cada um tem sua caminhada e que seu amado continua sempre com ela, esperando-a na hora certa! Ah! Deve ter sido uma bela história de amor, mas aqui o assunto é outro e como ela mesma diz: a vida é presente... viva agora! 

O neto é seu melhor companheiro, mas sem pressão. Cássio tem sua vida agitada, sua rotina, seus desejos e só deixa tudo de lado para encontrar a avó, às quintas-feiras, faça chuva ou faça sol. Esse é o trato que fizeram quando ele tinha seis anos de idade: aconteça o que acontecer durante a semana, quinta nos encontramos, sem desculpas. E o que começou como uma forma de fazer a criança parar de chorar na porta da escola, virou agenda da vida dos dois! Os anos foram passando e as quintas-feiras continuam firmes e fortes, como o laço de carinho que os une. 

Embora o começo do encontro semanal seja sempre o mesmo: café, pão de queijo e passeio na orla, a programação é extensa e surpreendente. Às vezes, almoço em hotel cinco estrelas, às vezes, cachorro-quente na praia. As tardes já tiveram duas sessões de cinema, seguidas de discussão filosófica na livraria; aulas de dança de salão; e até trabalho voluntário escrevendo cartas na rodoviária. Inclusive, dona Emília mantém boa caligrafia desde quando Cássio aprendeu a escrever. E, assim, quando o neto completou quinze anos, comemoraram realizando o sonho de ajudar quem não sabe escrever a mandar cartas de amor, de saudade, enfim, ligar as pessoas usando a delicada dupla papel e caneta. 

O amor pela leitura é outra faceta da dupla. No começo, Monteiro Lobato, Ruth Rocha... conforme o neto ia crescendo, a avó incluía nesse cardápio Machado de Assis, Jorge Amado, clássicos mundiais como Dom Quixote, diversaobras de Shakespeare, sem falar nos dramaturgos brasileiros nos filósofos de todas as vertentes. Enfimo negócio de dona Emília era doutrinar o neto. Nas palavras dela, o jovem precisa ser incentivado e instigado a pensar, discutir e formar seu pensamento, mas precisa de um Norte e o de Cássio já estou dando. Preparar meu neto para vida é minha alegria! 

E assim que chegam do outro lado da rua, como num passe de mágica, a senhora e o rapaz deixam de ser meus personagens e voltam à realidade, onde não os conheço. Mas tudo bem, afinal, vida é presente! Presente, aliás, como dona Emília e Cássio foram pra mim nesse dia de garoa no litoral.  

Ah! Agora vou aceitar o pedaço de bolo que a balconista da cafeteria me ofereceu mais cedo. Faço um sinal e lá vem o pratinho com uma fatia, massa e cobertura de chocolate... parece dos bons, aposto que aqueles dois adorariam me acompanhar nessa. Mas acho que eles preferem sorvete. E tem que ser de massa... e tem que ser no copinho... e tem que ser de creme com cobertura crocante... assim Cássio decidiu quando tinha oito anos e até hoje avó e neto saboreiam sua sobremesa preferida... opa, voltaram? Será que eles ainda estão atravessando a rua? 

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