domingo, 17 de dezembro de 2023

Mundo particular

A varanda é sua terapia, seu refúgio. Não, ela não é do tipo alcoviteira, mas gosta de apreciar a vida acontecendo. Ali, onde suas plantas crescem plácidas, banhadas pelo Sol. Onde sua mesinha de madeira de demolição ostenta o café de todas as tardes, xícaras, bule e leiteira de porcelana de bordas douradas (comprados em leves e longas prestações), cesta de pãezinhos, bolo de baunilha, geleia de amora, manteiga, todos sobre a toalha de linho branco com pequenas flores azul-celeste.

Ela gosta de parar alguns instantes para admirar as pequenas flores na toalha porque a cor azul-celeste a faz lembrar dos versos de uma doce canção que diz: “vi seu olhar, seu olhar de festa, de farol de moto, azul-celeste, me ganhou no ato, uma carona pra Lua”, de Eduardo Dusek. O nome da música é Aventura e ela adora desde sempre, mesmo que, ultimamente, esteja se aventurando apenas em pensamento. Fica cantando timidamente até ser interrompida pelos pássaros, que visitam sua varanda atrás das migalhas de pão e de bolo, ou, então, pelo latido agudo e olhar urgente de sua cadelinha.

Assim é seu cantinho na metrópole, é ali que ela reflete ou, simplesmente, celebra a beleza da natureza, das pessoas e das coisas da vida, pelo menos à distância… rsrsrs… porque de perto, na intimidade, como dizia sua avó, são outros quinhentos. De repente, uma brisa quente invade a tarde, anúncio de chuva, mas pra depois, porque, neste momento, o céu continua azul como as flores bordadas no linho e a letra da canção. Agora, está na hora de saborear os quitutes que a esperam pacientemente na mesa posta.

Ela começa pelo bolo de baunilha, uma receita de sua tataravó. Pois é, a maioria das pessoas mal sabe quem foi a bisavó, imagine tataravó, mas ela é privilegiada. Inclusive, tem fotos no colo da bisavó, ainda que não lembre exatamente a sensação de aconchego que aquela imagem passa quando admira o registro de família. Voltando ao bolo, é um segredo guardado a sete chaves e ela, assim como todos parentes, só teve acesso à receita e permissão para efetivamente fazer o acepipe quando completou a maioridade. A coisa é séria, mas é assim, “o importante é o que importa, só dê valor ao que realmente vale a pena”, já dizia sua avó.

O chá é o acompanhamento ideal para o bolo, aconselhado, inclusive, na observação no rodapé da receita original, mas ela prefere saboreá-lo com uma xícara de café com leite, isso longe de olhos que possam provocar qualquer arranca-rabo com a família. Até sente um arrepio quando pensa na possibilidade da tia mais velha flagrá-la cometendo esse pecado. Então, abre um sorriso e suspira de alívio, afinal, está em seu mundo particular, ali tudo que dá prazer é permitido.

A primeira mordida, como sempre acontece, dispara uma sensação de alegria, como se revivesse todas as aventuras da infância e da adolescência, quando se reuniam em datas comemorativas ou, simplesmente, para saborear o patrimônio culinário da família. Esse bolo tem magia, com ele, as lembranças são sempre boas, remete a momentos de descontração e total aceitação, é como se fosse um carinhoso abraço coletivo.

Seus pensamentos sabor baunilha só são interrompidos pela visão da cesta de pães… que delícia! Ela termina de comer a fatia de bolo e escolhe delicadamente um dos pãezinhos. Passa a manteiga como se estivesse esticando o lençol na cama, até que toda a superfície esteja besuntada. Mais um pouco de café com leite e sua memória volta a sorrir. Ela gosta de reviver suas lembranças nos mínimos detalhes. Porque a vida se faz nos detalhes, o bom da vida está nos detalhes, em momentos que se fazem inesquecíveis.

Geleia de amora. Esta tem história. Produção própria. Sim, ela também tem seus segredos. Só que, nesse caso, não cede a receita de jeito nenhum. Quando alguém elogia o sabor de seu doce, ela logo corre à despensa e presenteia a pessoa com um potinho. Faz isso, principalmente, para pessoas queridas. Que fique claro, nem todos merecem ser brindados com seus potes recheados de amor, mas, especialmente, quem acaricia seu coração. Outro dia, o felizardo foi o jardineiro do prédio, que quinzenalmente cuida das plantas de sua varanda. Ficou tão encantado com a cor e o sabor da geleia, que ela resolveu presenteá-lo com um potinho. O sorriso de agradecimento dele valeu o dia.

Satisfeita, ela tira a mesa e volta ao seu cantinho. É hora de descansar na querida cadeira, repleta de almofadas, pra observar o movimento ao redor. Os passarinhos sempre chamam sua atenção, quando pousam sorrateiros, procurando migalhas que ela possa ter esquecido pelo chão. Ah! Se eles soubessem que ela não esquece, mas, na verdade, deixa restinhos bem discretos de bolo e pão espalhados pelo peitoril e, em instantes, os primeiros começam a chegar, sabiá laranjeira, bem-te-vi, entre outros. Em seguida, quando, satisfeitos, eles voam para longe, aparece o beija-flor, para quem ela prepara, diariamente, com todo o carinho, uma garrafinha de água com açúcar. 

Quando a avezinha termina seu balé em volta do bebedouro, dá dois voos ao redor da generosa humana, pois sabe, sem modéstia, que ela se encanta com sua beleza e também em agradecimento a quem patrocina seu lanchinho diariamente. Assim que o beija-flor se afasta da varanda, a campainha toca. Pronto, é hora de deixar seu mundinho particular. Ela se levanta calmamente e é seguida pela cachorrinha de olhos redondos e laços de fita, que se manteve satisfeita sentadinha esse tempo todo ao lado da dona. :)

*A ilustração é da @ilustralika (designer, ilustradora e minha afilhada/sobrinha/parceira)

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