Era uma vez um bule de café, daqueles antigos, extremamente charmosos e de porcelana, com elegantes frisos dourados. Esta poderia ser a história de alguém que mantém o bule da avó, de décadas atrás, junto a inúmeros utensílios e eletrodomésticos modernos. Mas, na verdade, esta é a história de um tradicional bule de café chamado Joaquim, Joca para os íntimos.
A vida de Joca não é fácil. A solidão, muitas vezes, é sua única companheira. Ele fica guardado na cristaleira da sala junto a outras peças de porcelana e algumas taças de cristal. Como todo bule especial, ele não é usado diariamente, apenas quando há mais pessoas na casa, as famosas visitas. É de poucos amigos e também um pouco seletivo além do necessário, mas, enfim, cada um com suas regras!
Joca gosta de filosofar, nada muito acadêmico, apenas divagar sobre a vida e os caminhos a se seguir, em meio aos obstáculos que teimam em aparecer. O leitor pode estar se perguntando: quais obstáculos um bule pode ter de enfrentar? Ora, não seja insensível, são muitos os momentos inesperados pelos quais um bule de porcelana pode passar.
Em sua longa vida, alternando momentos na cristaleira, à mesa ou na pia sendo lavado, Joca já viu muitos cafés da manhã, da tarde, pós-almoço e pós-jantar, conheceu muitos perigos quando as visitas vinham acompanhadas de crianças e de animais de companhia, cães e gatos, os dois sempre muito ameaçadores. Os gatos por adorarem jogar tudo que podem no chão. Os cachorros por serem muito curiosos, acham que tudo é brinquedo.
Esperto, mesmo vivendo dentro de uma cristaleira a maior parte do tempo, Joca percebe quando será requisitado à mesa. Os moradores da casa ficam agitados, alguns arrumam a bagunça da sala de estar, como se isso fosse durar muito tempo; outros gritam a lista de itens que devem comprar no supermercado e na padaria, incrível como sempre está faltando de tudo; a correria entre a sala de jantar e a cozinha só acaba quando uns saem pra fazer as compras, enquanto outros estendem a toalha na mesa retangular, seus bordados são delicados combinam com os guardanapos de pano, que, aliás, como Joca, só saem das gavetas do aparador da sala de jantar em dias especiais. Talheres, xícaras, pires e pratos de sobremesa são organizados meticulosamente, deixando o ambiente elegante e acolhedor.
Mais alguns minutos e eis que alguém abre a porta da cristaleira, falando tão alto que quase estilhaça as taças de champanhe, e pega Joca. Esta é sua razão de existir, ele adora o cheiro do café fresquinho sendo derramado em seu interior e aquecendo sua barriguinha. Porém, antes dessa sensação agradável, ele é lavado na pia e, embora a esponja seja macia, nem sempre as mãos que o seguram são hábeis o bastante para deixá-lo tranquilo.
Por outro lado, Joca concorda que deve ser higienizado, pra tirar aquele cheiro de armário antigo... ahahaha... Que a cristaleira não nos ouça! Depois de lavado, ele recebe o carinho de uma toalha, que o seca com cuidado, causando ciúmes entre as louças que estão no escorredor de pratos. Fazer o quê, ele é uma relíquia de família! Particularmente, Joca gosta mais de ser chamado de peça rara, é mais instigante, torna-o único e imprescindível, pelo menos, enquanto estiver inteiro. Por esta razão, todas as vezes em que é lavado, ele torce para não ser quebrado ou lascado, pois todos sabem que porcelana lascada costuma ser descartada. Certamente, Joca não irá para o lixo, inclusive há um boato, que apavora a todos que moram na cristaleira, sobre a existência de um local para onde são levadas as relíquias da família que estão avariadas.
Mudando de assunto, voltemos ao momento em que Joca é colocado sobre uma bandeja, ornamentada com uma toalhinha de renda, ao lado de um açucareiro que ele nunca viu antes. O bule continua vazio, afinal, o café só será coado quando as visitas chegarem, mesmo assim, Joca já está pronto para ser o centro das atenções! Enquanto não chega a hora de ser abastecido, ele fica encarando o tal açucareiro. E pensa, assustado, onde será que foi parar o Afrânio?
Afrânio é seu companheiro, um açucareiro, também considerado relíquia! Será que algum desalmado quebrou o Afrânio? Ele tinha duas asas tão lindas, Joca sempre dizia que um dia o amigo ainda ia voar. Será que ele foi levado para aquele... que horror! Agora, o bule não terá mais o amigo açucareiro para compartilhar impressões sobre o comportamento das pessoas à mesa.
Joca e Afrânio sempre foram muito amigos, tinham altas conversas, tanto filosóficas quanto nonsense. Agora Joca se vê na bandeja com um açucareiro que mais parece um pote qualquer. E de plástico! Não combina nada com a louça que está posta na mesa da sala de jantar, nem com nosso querido bule!
Onde estará Afrânio? O que de fato aconteceu com ele? E quando? Afinal, ontem mesmo Joca havia passado a tarde toda conversando com o amigo sobre as novas toalhinhas que colocaram nas prateleiras da cristaleira e foram consideradas um perigo. Mas o que quer que tenha acontecido com o açucareiro não foi ao alcance dos olhos do bule. Deve ter sido à noite, quando buscaram Afrânio para o chá com alguém importante, uma visita ilustre, vai saber!
Argh! Chá com açúcar não é nada bom, mas Joca sabe que existem os adeptos da nobre bebida que teimam em adoçá-la. Enfim, gosto é gosto. No caso do café, Joca gosta de quem coloca um pouquinho de açúcar por causa de seu amigo Afrânio, mas agora está seriamente inclinado (com todo cuidado, claro... rsrsrs) a não aceitar mais, para evitar proximidade com o tal açucareiro moderno.
Incrível, mas o tal açucareiro ainda está com uma etiqueta colada em suas costas... ou na frente, não importa, ele é igual de todos os lados, sem elegância alguma. Indignado, Joca não se conforma que seu amigo Afrânio, tão requintado, tenha sido trocado por uma peça tão sem graça, desprovida de beleza e atitude como esse novo açucareiro. Aliás, as pessoas da casa deveriam ter vergonha de colocar uma coisa dessas ao lado de Joca, um bule que carrega toda a tradição da família.
Nos próximos minutos, o silêncio invade a cozinha. As pessoas que se trombavam entre o fogão e a pia, e seguem para a sala em uma espécie de procissão da alegria, todos falando ao mesmo tempo, quase encobrindo o som da campainha. Joca suspira, chegaram as tais visitas! É hora de se preparar, mas dessa vez não terá as conversas com seu amigo e isso o aborrece. Nem bem concluiu o pensamento, Joca sente sua tampa, que prefere chamar de chapéu, ser retirada e, em seguida, o calor do líquido tão saboroso preenchendo sua barriguinha. Que cheiro agradável! Opa, alguém pegou a bandeja, então, o mundo torna-se momentaneamente instável, até que é colocada sobre a mesa, que está linda! Joca olha para o açucareiro e faz uma careta. Ele não combina com nada! A toalha, os talheres, as louças são todas tão finas! Sua indignação aumenta, quando se pergunta qual a dificuldade dessas pessoas em comprar um açucareiro de porcelana para repor seu amigo? Seria uma forma de mostrar o respeito que Afrânio e todas as peças do conjunto original merecem! Infelizmente, não há nada a fazer por hora. Apenas lamentar a ausência dele e a presença indesejada do tal açucareiro modernoso. Que falta de noção que se tem nessa casa!
De repente, Joca arregala os olhos e pensa que o dia pode se tornar ainda mais tenso. Crianças, gritaria, choro, bagunça. Definitivamente, visitas com crianças sempre tornam as refeições mais perigosas quando se é um bule de porcelana. E não há mais o apoio de Afrânio, agora, só há aquele açucareiro de plástico inanimado. Joca lembra que Afrânio sempre dizia que apenas as peças de porcelana têm alma e se comunicam entre si, as demais são apenas utensílios.
Conformado que está sozinho deste lado da mesa, Joca se prepara para fazer a alegria dos que amam café. A gritaria é absurda, os adultos parece que nunca viram comida antes, atacam pãezinhos e potes de geleia e requeijão. A mantegueira, também feita do tal plástico, torna-se alvo das variadas espátulas, vindas de todas as direções, é quase uma guerra de capa e espada... ahahaha... tudo bem, Joca pode estar exagerando. Compreensível, as peças de porcelana são delicadas, por isso consideram tudo ameaçador.
A refeição começa tumultuada, com as crianças correndo ao redor da mesa e fazendo manha. E manha é o que mais deixa Joca tenso. As crianças manhosas costumam jogar tudo no chão (como gatos), esperneiam e até puxam a toalha de mesa, derrubando tudo, só pra chamar a atenção. Um horror!
O bule se lembra de uma vez em que apenas ele e Afrânio permaneceram intactos, quando uma pirralha mimada puxou a toalha. Foram pratos, xícaras, talheres e toda a sorte de comida para o chão. Os dois só se salvaram porque a matriarca da família os segurou. Ela sim cuidava das peças de porcelana. Joca tem saudade daqueles doces olhos cor de amêndoa.
Angústia, à parte, Joca resolve se acalmar, afinal, um café da tarde não é eterno, a mesa vai ser tirada e ele vai ser lavado e colocado novamente na cristaleira, longe de mãos desastradas e curiosas. A tensão de nosso bule de porcelana diminui, consideravelmente, quando um dos adultos convida as crianças para uma brincadeira qualquer e as leva para a varanda. É hora do descanso para todos, adultos, crianças e, inclusive, para a louça, talheres e demais utensílios. Só as senhoras que trabalham na cozinha não descansam, elas precisam tirar a mesa e organizar a cozinha para a próxima refeição e, então, podem descansar, é isso… os humanos têm dessas coisas, todos são iguais, mas uns podem descansar mais que os outros. Joca jura que já ouviu algo parecido para definir a sociedade humana, mas não importa, isso é lá com eles! O que o bule quer mesmo é voltar logo para a cristaleira!
Aos poucos, a mesa vai ficando vazia e o tampo da pia cheio. Este é mais um momento de tensão, Joca considera a pressa das senhoras um agravante, nem todas parecem ter cuidado ao manusear as peças de porcelana. E, hoje, nosso bule está mais nervoso do que o normal e quando as mãos da mais velha das senhoras se aproxima para pegá-lo, sente um arrepio que só quem é de porcelana pode sentir.
A senhorinha começa a esfregar a esponja e, de repente, plaft, derruba Joca dentro da pia de inox. Ele só ouve um “perdão” e quando abre os olhos, que havia fechado durante a queda, fica horrorizado. A senhora está com sua asa na mão, separada de seu corpinho frágil… e agora? Ela chora, pois sendo a mais antiga da casa, estava acostumada com a presença do clássico bule e sabia lavá-lo como nenhuma outra. Por isso mesmo Joca se sente arrasado… por que ela não teve o mesmo carinho de sempre?
Neste momento, alguém entra na cozinha e dá um grito de advertência. A senhorinha começa a chorar, dizendo que não teve culpa, que sempre cuida muito bem das porcelanas. Mas logo é retirada da cozinha sem o menor respeito. Depois de ver a cena de violência, ele se solidariza e lembra de quantas vezes ela o lavou com o maior cuidado, conversando com ele, sem saber que a ouvia. Ela sempre dizia ter saudade da dona original das peças de porcelana que compõem o aparelho mais tradicional da família. Joca sente lágrimas escorrendo de seus olhinhos. Será que vão me deixar jogado aqui dentro da pia, ensaboado e solto de minha asa? O que vai ser de mim?
Estranhamente, um silêncio enorme invade o ambiente, maior do que dentro da cristaleira quando a família viaja e a casa fica só com os empregados. O que será que aconteceu? Joca fica se perguntando até quando ficará esquecido ali naquele lugar úmido. Já faz tanto tempo que está largado que começa a temer por seu destino, será mais cruel que ir àquele lugar para onde são levadas as porcelanas avariadas? Não pode ser. Será simplesmente jogado no lixo junto a cascas de laranja e restos de comida? Que horror!
Quando Joca está quase surtando, vozes alteradas interrompem seus pensamentos. São algumas pessoas, entre elas, filhas e filhos da saudosa dona das peças de porcelana. Estão todos exaltados, uns querem mandar as senhoras que trabalham na cozinha embora, outros pedem calma. Até que a mulher mais baixinha de todos se aproxima da pia com lágrimas em seus olhos cor de mel e pega com delicadeza Joca e sua asa e os encosta no peito, chorando convulsivamente, até que um homem, também gentil, pede que a mulher se acalme, afinal, eles vão cuidar do bule e ele vai para… Joca sente um arrepio por todo o corpo, até na asa descolada. Seu nervosismo é tanto que ele não escuta para onde vai e se irrita consigo mesmo. Que saco, toda a vez que fica nervoso demais, fica surdo. Será que isso é coisa de bules de porcelana ou os humanos também são assim? Não importa, cada um com suas esquisitices.
Depois de abrir a torneira para tirar o sabão das peças, a mulher envolve Joca e a asa em uma toalha macia. Ele sente que ela começa a andar, mas como está com os olhos cobertos, não sabe em qual direção, apenas que está deixando a cozinha. Para onde será que está sendo levado? Com o som das vozes abafado pela toalha, Joca não consegue ouvir o que conversam. O tempo em que percorrem da cozinha para o tal lugar dá a sensação de que estão há horas andando. Isso é ridículo! A casa não é tão grande assim para que passem horas andando. Ou é fora da casa principal ou Joca perdeu a noção de tempo. A segunda alternativa deve ser a correta. Ele está desorientado.
De repente, a mulher baixinha e o homem gentil param de andar e o barulho de uma porta sendo destrancada desvenda o mistério, chegaram ao tal lugar! Um frio percorre seu corpinho de porcelana, enquanto uma luz é acesa. O cheiro do ambiente é mais forte do que o da cristaleira, o que pressupõe que existam muito mais peças ali e que o Sol deva bater menos que em sua querida e agora antiga casa.
Ainda enrolado na toalha, Joca é colocado em cima de uma mesa ou seja lá qual for a superfície e sente alguém, não dá pra saber se é a mulher ou o homem, mexendo onde antes havia sua asa. Será que não vão tirar essa toalha de cima de mim?, questiona Joca, em pensamento. Durante todo o procedimento de colagem de sua asa, ele permanece coberto pela toalha, o que o deixa ainda mais apreensivo.
Será que ele ainda está na casa da família, casa da saudosa dona do aparelho de porcelana? Claro que está! Não devia estar tão angustiado, afinal, está sendo cuidado. Sua asa está sendo recolocada, até sente uma energia boa, se sente completo novamente! A mulher fala alto e, dessa vez, mesmo embaixo da toalha, Joca entende. Ela diz que o bule deverá ficar a noite toda assim, no aconchego da toalha macia, até que eles voltem na manhã seguinte para conferir se sua asa está bem fixada. Joca dá um suspiro e tenta se acalmar. Vai ter que esperar mais algumas horas até poder conhecer o lugar para onde são levadas as porcelanas avariadas!
Durante toda a noite, Joca não consegue pregar o olho e estranha muito o silêncio que toma conta do recinto. Será que este não é o local para onde o amigo Afrânio foi levado? Ou será que está em uma espécie de hospital das peças de porcelana? Neste instante, o barulho da porta tira o bule de seus pensamentos. As vozes da mulher e do homem que o socorreram na noite anterior entram e acendem a luz, conversando em tom mais alto, o que Joca espera que aumente a possibilidade de entendimento com relação a seu futuro. A mulher desenrola, delicadamente, a toalha, dá um sorriso enorme, enquanto uma lágrima escorre pelo seu rosto. O homem coloca a mão no ombro dela e fala palavras carinhosas. Joca se anima, sentindo sua asa novamente colada ao corpo.
O homem pega o bule para conferir se sua asa está bem colada e a mulher beija a barriguinha de Joca, erguedo-o às alturas como se fosse um troféu de campeão! Quando Joca, finalmente, é colocado em cima da mesa, sente um alívio imenso. E fica ainda mais animado quando ouve o casal falando que irão levá-lo para a prateleira das relíquias recuperadas... uau, pensa Joca, que nome imponente! Onde será que fica essa tal prateleira? Para o bule, deveria ficar na sala de jantar, para que continuassem a ser admirados pela família e suas "perigosas" visitas. Mas Joca sabia que não era assim, as louças que quebravam, imediatamente, sumiam da vista de todos, inclusive das outras peças do tradicional aparelho de porcelana. Mas, agora, estava curioso para, quem sabe, rever seu amigo querido.
A mulher usou a toalha macia para polir Joca, em seguida, segurou-o com firmeza e fez um sinal para o homem. Estava na hora de colocar o querido bule no lugar em que toda peça de porcelana recuperada merecia ficar. Que agonia, Joca não via a hora de chegar logo no tal lugar! O homem abriu caminho, tirando um chaveiro do bolso e dizendo à mulher que o seguisse com cuidado. O barulho da chave na fechadura deixa Joca cada vez mais curioso. Quando a luz é acesa, a primeira coisa que o bule vê é a tão falada prateleira das relíquias recuperadas! Uau! É linda!
Chegando mais perto, um sorriso se abre em seu rosto, Afrânio está ali, mas, que estranho, parece sem vida. Joca é colocado, exatamente, ao lado do amigo açucareiro! Que alegria vê-lo! Enquanto o casal conversa, Joca, ainda intrigado, lembra Afrânio dizendo, certa vez, que todo o cuidado era pouco, porque peças de porcelana nunca deveriam conversar na presença de humanos. É isso! Quando eles saírem daqui, certamente, serei recebido com a educação e a elegância características de nós peças de porcelana, pensou Joca, aliviado.
Sorrindo, o casal acena para Joca e, de maneira um tanto quanto afetada, fecha a porta. O silêncio invade o ambiente e, segundos depois, o bule resolve que é hora de interagir com seu amigo. Limpando a garganta com um leve pigarro, Joca olha para Afrânio dizendo um bom dia empolgado, mas para sua tristeza nenhuma resposta, nem um olhar. O que aconteceu com o amigo açucareiro? Será que ele perdeu a capacidade de falar? Angustiado, o bule fecha os olhos e dá um longo suspiro.
E antes que Joca pudesse abrir os olhos, Afrânio responde ao bom dia, também empolgado. Explicando que fica o mais imóvel possível na presença de humanos, o açucareiro fala sem parar, diante de um Joca encantado. Foram longos meses de solidão, por isso, Afrânio desembesta a falar, contando tudo o que aconteceu com ele nesse longo período em que os amigos não se viram. Como o bule havia pensado, tudo se deu mesmo durante um chá da noite, quando uma das visitas, uma criança bem pequena por sinal, esbarrou no carrinho de chá acertando Afrânio em cheio. O açucareiro empatifou-se no chão, causando um silêncio seguido de gritaria que só quem estava dentro da cristaleira mesmo pra não ouvir. Joca tenta se desculpar, dizendo que realmente só percebeu sua ausência quando foi colocado na bandeja com o tal açucareiro de plástico.
Intrigado, o bule pergunta como foi sua recuperação, afinal, não consegue entender como o amigo se espatifou no chão se agora parece estar inteiro. Sem titubear, Afrânio diz que foi colado, pedaço por pedaço, durante vários dias. Pelos seus cálculos, que não são exatamente o dos humanos, deve ter ficado mais de uma semana para que fosse reconstruído.
Joca fica feliz vendo que o amigo, mesmo anteriormente espatifado, conseguiu se reestabelecer e, agora, os dois estavam ali conversando animadamente, mesmo depois de experiências tão traumatizantes. Curioso, o bule quis saber do açucareiro porque o silêncio onde havia tantas peças de porcelana recuperadas. Sem titubear, Afrânio explica que nem todas as peças se comunicam, apenas as que pertencem aos aparelhos da saudosa matriarca da família. Joca custa a acreditar. Como assim, só algumas peças de aparelhos específicos podem se comunicar? Os dois amigos passam muito tempo falando sobre o assunto, longos minutos ou talvez horas, não há como saber. Mas o fato é que, em determinado momento, Joca é avisado de que havia regras e, por exemplo, quando a luz externa, que entrava por uma fresta da janela, baixa, eles devem descansar e manter silêncio. Ainda sem entender muito a dinâmica do lugar, Joca acata a decisão de Afrânio e fecha os olhos, tentando relaxar e, quem sabe, dormir um pouco.
No dia seguinte, Joca acorda com a luz do Sol entrando por uma brecha da janela. Ainda muito curioso, o bule pergunta se todos gostam do lugar e Afrânio responde que todos estão satisfeitos com a nova casa e que, por vezes, chegam a preferi-la à tradicional cristaleira. Joca fica atônito, talvez porque acabou de chegar e ainda sente falta do cheiro do café e do quentinho em sua barriga.
Ali as horas passam rápido, quando percebem, a noite chega e é hora de descansar. Joca estranha porque parece automático, a luz vai diminuindo ao mesmo tempo em que os olhinhos vão se fechando, em meio a suspiradas de cansaço. Em poucos segundos, todos caem no sono, inclusive o próprio bule, que nem imaginava que queria dormir.
Na manhã seguinte, Joca se surpreende quando vê do outro lado da prateleira uma espécie de escada, feita de barbante. Quem será que usa aquilo? Intrigado, ele fica animado com a possibilidade de conhecer outras prateleiras.
Joca tenta se acostumar com a rotina da nova "casa". A noite chega e o silêncio paira entre as peças de porcelana. A maioria dos olhinhos se fecham para o descanso, menos os dele. Está muito curioso com a tal escada, quer conhecer outras peças, desvendar outros ambientes.
A curiosidade de Joca é maior do que qualquer risco que usar uma escada de barbante pode significar para um bule de porcelana recuperado. Por alguns segundos, fica analisando se a escada é resistente, afinal, ele não é o que se pode chamar de leve.
Quando Joca alcança a prateleira, driblando a dificuldade de subir, seus olhos se iluminam... Carmela! Há quanto tempo não se viam, mal se conheceram, pois quando chegaram da loja de porcelanas finas, alguém tropeçou, espalhando as baixelas de prata em cima da pobre leiteira!
– Você! Achei que tivesse ficado esfarelada no dia em que chegamos à casa de nossa querida humana! Nunca mais tive notícias suas!
– Joca!
– Você sabe meu nome?
– Claro! Somos do mesmo aparelho! E nos apresentamos um segundo antes das baixelas de prata terem mudado completamente o rumo de minha vida.
Enquanto Carmela fala, Joca se encanta pelos olhos brilhantes da leiteira de sua vida, a companheira com quem sonha desde aquele fatídico dia em que a viu quase toda despedaçada sobre a toalha de renda francesa.
Quando para de falar, ela fica olhando aquele bule charmoso com quem pensou que viveria anos e anos dentro da cristaleira e nos cafés da tarde da família.
– A cristaleira... sempre fiquei imaginando como seria bom morar lá... mas não tive a oportunidade...
– Ah! Eu confesso que gostava da cristaleira quando tinha o Afrânio pra conversar, mas depois que ele sumiu, perdeu a graça...
– Imagino como deve ser triste ir vendo as peças sendo lascadas, quebradas ou esfareladas como você disse sobre mim...
– Por favor, me desculpe, é que fiquei tão feliz em vê-la...
– O que esperava encontrar aqui em cima?
– Sinceramente, subi a escada porque estava entediado de ter que dormir na hora certa, mesmo sem sono... quando vi a escada fiquei curioso...
– E gostou do que encontrou aqui?
– Certamente! Foi uma bela surpresa te ver aqui, Carmela!
– Que bom ouvir isso, faz tempo que ninguém conversa comigo...
– Por que você vive aqui sozinha?
– Ah! Porque quando vim pra cá estava muito frágil, tive que ficar afastada das outras peças enquanto aconteciam as várias sessões de colagem dos meus cacos...
– Imagino como deve ter sido difícil, mas não fale assim... pelo que vejo, você não está mais em cacos.
– Sim. Inclusive, nossa querida humana queria que eu ficasse na mesma prateleira com as outras peças, mas quando ela adoeceu, os herdeiros vieram aqui e me colocaram de volta na prateleira-hospital e, apartar daí, só converso de em quando e de longe, porque ele nunca se arriscou a subir a escada. Você é muito corajoso, Joca!
– Obrigado! Mas assim fico encabulado... rsrsrs
– Não fique... você deve ter feito muitos amigos nesse tempo todo.
– Amigo mesmo só o Afrânio!
– Poderíamos ter sido amigos também se não tivesse acontecido aquela tragédia...
– Ora, podemos começar nossa amizade agora mesmo!
– Mas você mora na prateleira de baixo com as outras peças...
– Não entendo por que te tiraram do convívio com os outros.
– Também não entendo, mas Afrânio acredita que os herdeiros têm consciência pesada por terem me esfarelado no dia em que fomos adquiridos por nossa querida humana, por isso, querem me deixar longe dos olhos de todos.
– Isso é crueldade! Não vou te deixar aqui sozinha!
– Mas você tem que ficar lá onde te colocaram... se eles te verem aqui, pode prejudicar os demais... humanos são cruéis!
– Não vou voltar pra lá... só se puder te levar comigo!
– Joca... não posso descer essa escada, estou colada, mas fiquei muito frágil... qualquer toque, posso esfarelar de novo, imagina se cair da escada!
– Carmela! Você acha que eu ia deixar você cair?
– Claro que não! Só tenho medo... já sofri demais...
– É isso aí! Você já sofreu demais pra ficar aqui sozinha! Vem comigo!
Carmela pisca os olhinhos, dá um suspiro e abre um sorriso para Joca, que só não se desmonta todo, porque está bem colado... rsrsrs
– Está bem... mas como vamos fazer?
– Eu desço e faço uma cama bem fofinha para que você pule!
– É muito arriscado... volte para lá e me deixe aqui, Joca! Já te perdi uma vez, consigo aguentar a solidão.
– Você me perdeu? Imagina, quando te vi esfarelada em cima da toalha de renda, fiquei tão arrasado... eu que não aceito te perder mais uma vez.
– Sempre gostei de você, Joca, mas não imaginava...
–... que sou louco por você? Bobinha! Sempre sonhei com você, mas imaginei que não tinha conseguido se recuperar, ninguém mais teve notícias suas.
– Ah! Joca... que bom ouvir isso! A cada nova peça que chegava eu perguntava pro Afrânio se era você...
– Que saudade de cristaleira, que nada. Se eu soubesse que você estava aqui, tinha me jogado da bandeja na primeira oportunidade só pra vir pra cá!
– Não seja tolo! Sorte que você só teve que colar sua asa, eu não ia aguentar saber que você não teria conserto...
– Ahahaha... confesso que até subir essa escada achava que não tinha mais conserto na vida...
Joca se aproxima devagarinho e dá um beijo em Carmela. O resto da história? Ah! Fiquem à vontade pra imaginar como o charmoso bule e a delicada leiteira viverem felizes para sempre, com as bênçãos do grande amigo açucareiro! :)
* O desenho é um doce rabisco de minha autoria, sem grandes pretensões, apenas para ilustrar a história de meus queridos personagens de porcelana... rsrsrs
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