quarta-feira, 31 de julho de 2024

Cinza azulado

– Hoje os meteorologistas disseram que o Sol ia aparecer. Olhando pela janela, custo a acreditar.

– Concordo, o céu está cinza azulado, sabe aquela cor suave, neutra, própria de blusinha de frio?

– Ahahaha... brusinha de frio?

– Engraçadinho!

– Eu aqui querendo ser romântico, contemplando o céu, e você me vem com blusinha de frio de cor neutra? Brochante!

– Como é bobo! Acordei cheia de boas intenções, mas depois dessa palhaçada...

– Só se for sua palhaçada, eu tava aqui comentando sobre a beleza sóbria do dia, você que estragou o clima...

– Ah! Estraguei? Tava aqui com uns planos, mas sendo assim, mudarei a rota do meu dia.

– Mudará a rota do seu dia? Como assim?

– Tá curioso? Esquece, a nova rota não inclui você, querido!

– Não fala assim, nem brincando, sua Malvina Cruela!

– Ahahaha... desenterrou essa personagem, hein?

– Não muda de assunto.

– Meu bonde não aceita quem tem preconceito contra as blusinhas de frio de cores neutras como você...

– Engraçadinha!

– Já te chamei de engraçadinho antes, você não tem vocabulário?

– Isso é o que não falta: espirituosa!

– Adorei, pândego do meu coração!

– Não seja burlesca! Agora, voltando ao assunto bonde...

– O que você quer saber, querido?

– Quero saber pra onde você tá pensando em ir de bonde, pro Rio de Janeiro, pra Santos, fala logo, que bonde é esse?

– Voltando ao céu cinza azulado... acordei pensando que a gente poderia...

– Viajar?

– Sim, mas aproveitando esse friozinho lá fora, queria te levar pro quarto pra gente embarcar num bonde chamado desejo!

– Ahahaha... mas que breguice clássica! Adorei! Vem cá, que você merece entrar no quarto no meu colo!

– Só não vale me jogar na cama feito um saco de batatas como aquela vez...

– Para com isso, hoje, tô romântico...

– Espero que não fique só contemplando... ahahaha...

– Galhofeira!

– Me pega no colo logo antes que a gente comece outra batalha dicionarística!

­– Fecha essa matraca e vem aqui. Tô brincando, amor... como é brava... não faz essa cara de quem mudou de ideia...

– Ahahaha... ó o medo dele!

– Vem pro meu colo agora que estamos perdendo o céu cor de blusinha... ahahaha...

– Ahahaha... que ódio, tô rindo! :)


* A foto que ilustra essa crônica é o despretensioso e singelo registro de um céu cor de blusinha que flagrei num dia qualquer... rsrsrs...

sábado, 27 de julho de 2024

Amor e arte

Nada mais apropriado do que na semana em que começam as Olimpíadas, falar sobre uma HQ brasileira que se passa em Paris! "Gioconda", do roteirista Felipe Pan, do ilustrador Olavo Costa e da colorista Mariane Gusmão, nos apresenta Francisco, um faxineiro do Museu do Louvre apaixonado por Monalisa, de Leonardo da Vinci. É uma história sobre amor à arte e sobre os segredos do amor. 

Sensível, Francisco é tão encantado pela dona do sorriso mais misterioso das galáxias... rsrsrs, que, enquanto trabalha, costuma contar sua vida a ela em longas conversas. Sua admiração é tanta que os amigos estão até acostumados com o foto dele viver desenhando-a.

Com ilustrações de cores vivas, a HQ nos transporta para a Cidade Luz. Francisco vê arte por onde quer que olhe. No metrô, aos seus olhos, cada passageiro parece ter saído de uma pintura... até que um dia, uma moça chama sua atenção... e aí... só lendo! Mas adianto que a HQ é repleta de nuances e mistérios, além de nos transportar para a chamada Cidade Luz, sempre inspiradora! Ah! Agora, deu saudade de andar por suas belas avenidas, com lojas de flores e restaurantes com cadeiras nas calçadas... e a linda Torre Eiffel... ulalá! :)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Literatura e reflexão


José Saramago é encanto, adoro a forma como ele conta uma história, com as falas dos personagens e do narrador enlaçadas no mesmo parágrafo. Os capítulos são densos e, ao mesmo tempo, fluem leves e envolventes. Fui conquistada logo nas primeiras páginas de “A Caverna” (edição portuguesa... presente do meu irmão Gé... ❤).

Inspirada no mito da caverna de Platão, a obra mostra como o capitalismo e a globalização impactaram e continuam impactando as economias locais. Em entrevista à Folha de S.Paulo, na época do lançamento (novembro de 2000), Saramago disse de forma simples e certeira: "... Na minha caverna, os personagens vão de fora para dentro. Quando chegam lá dentro, compreendem que aquele mundo não pode ser o deles. O livro vai em tendência contrária à sociedade atual. O autor deste livro quer que voltemos as costas para o que é cômodo, o que é errado. O autor quer que as pessoas não renunciem a pensar no que está a acontecer." É isso, os personagens escolhem não aceitar uma rotina sem vida, sem identidade, fora da realidade como muitos vivem, inclusive, hoje, presos em cavernas virtuais.

Cativantes, os personagens são muito ricos de sentimentos e têm suas personalidades desvendadas ao longo da narrativa. O protagonista, o oleiro Cipriano Algor, homem simples, cheio de filosofias, nuances e emoções guardadas, está sempre refletindo sobre tudo e todos à sua volta.

Marta, a filha de Algor, se empenha para salvar a olaria da família e não mede esforços para ajudar o pai nos desafios que enfrentam. Ela tem uma relação muito bonita com o pai e também com o marido Marçal, que trabalha como segurança no chamado Centro, um gigantesco empreendimento, símbolo do capitalismo, do consumismo e de todos os "ismos" que tornam o mundo mais desumano e até irracional.

Há preciosos momentos de reflexão, como no trecho: "... diz-se que cada pessoa é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada uma com seu silêncio, cada uma com o silêncio que é..."

Mesmo as passagens mais divertidos não deixam de ser reflexivas e provocativas, principalmente, quando o foco é o cachorro Achado, que apareceu na casa da família e foi adotado. Achado é um caso à parte, inclusive, porque o narrador mostra, com sensibilidade, suas reações e aflições em sua relação com o dono, Cipriano, com Marta, Marçal e, mais adiante, com a vizinha Isaura. 

Separei dois trechos como uma espécie de aperitivo para instigá-los à leitura, o primeiro: "Às vezes, penso que talvez fosse preferível não sabermos quem somos, disse Cipriano Algor, Como o Achado, Sim, imagino que um cão sabe menos de si próprio do que do dono que tem, nem sequer é capaz de reconhecer-se num espelho, Talvez o espelho do cão seja o dono, talvez só nele seja possível reconhecer-se, sugeriu Marta, Bonita ideia, Como vê, até as ideias erradas podem ser bonitas, Criaremos cães se o negócio da olaria falir...". O segundo: "... Ao contrário do que em geral se pensa, os cães, por muitos cuidados e mimos de que sejam alvo, não têm a vida fácil, em primeiro lugar porque até hoje ainda não conseguiram chegar a uma compreensão ao menos satisfatória do mundo a que foram trazidos, em segundo lugar porque essa dificuldade é agravada continuamente pelas contradições e pelas instabilidades de conduta dos seres humanos com quem partilham, por assim dizer, a casa, a comida, e às vezes a cama". 

Em resumo, sem medo do trocadilho... Achado é um achado! É um prazer conhecer, por meio do narrador, suas inquietações enquanto cão. 

Saramago conversa o tempo inteiro com seu leitor e nos brinda com pérolas como esta: "Autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas...". 

A maneira natural como o autor interage conosco, seus leitores, nos aproxima de sua arte e de seus personagens e, no meu caso, aumenta ainda mais a admiração que tenho pelo grande e saudoso escritor português, nascido na aldeia de Azinhaga. Salve Saramago! :)

sábado, 20 de julho de 2024

Alegria, sempre!

Outro dia, fui ao cinema assistir à animação Divertida Mente 2. Adoro os personagens/emoções, mas a Alegria é meu preferido, porque gosto do lado leve da vida, iluminado pelos sorrisos, gosto de provocar e de quem provoca risos e gargalhadas. Tudo fica mais fácil quando a alegria nos move, mas, claro, sem esquecer a importância dos outros sentimentos. 

Voltando à animação, gosto das cores fortes e dos diálogos bem construídos,  mas acho que as novas emoções poderiam ter sido mais bem exploradas. Preciso dizer que a Ansiedade me irritou profundamente... rsrsrs... vai ver porque ela adora aparecer por aqui de vez em quando. Já o grandão Vergonha sempre se escondendo em seu capuz lilás é um charme e representa muito bem essa emoção constrangedora... rsrsrs... é meigo! Inveja e Tédio poderiam ter mais participação.

Tudo bem que a adolescência é ansiosa, independentemente da geração, afinal, quando deixamos a infância, o mundo que se descortina nem sempre é fácil e se encaixar nele pode ser bastante doloroso. Ah! Adorei as entradas em cena da Nostalgia, é um indício de que eles vão nos brindar com outras fases da protagonista! Oba! Agora quero vê-la adulta e depois velhinha! Nem vem, Ansiedade, vou ficar numa boa aguardando a possibilidade de novas aventuras.

Sinceramente, me emocionei quando a Tristeza diz que a Riley precisa da Alegria! Esse momento me tocou porque acredito que todos precisamos nos conectar com nossa Alegria interior, nossa criança interior, só ela é forte o bastante pra nos ajudar a enfrentar os problemas cotidianos. Claro que as outras emoções estarão aí, mas nada como um pensamento alegre para harmonizar nossos sentimentos em ebulição. Viva as animações! :)

quarta-feira, 17 de julho de 2024

As clássicas tirinhas de jornal


Tem tirinhas que nos fazem voltar no tempo e uma delas é Frank & Ernest, de Bob Thaves. Outro dia, meu irmão (Gé) enviou duas delas pra rirmos juntos e na hora me animei a escrever sobre esses dois adoráveis fanfarrões. 


Depois comprei edições impressas de O Estado de S. Paulo e corri pra seção Quadrinhos, onde, diariamente, eles são publicados. Ah! Só pra conferir a tirinha do dia e porque gosto de coisas impressas... rsrsrs... Até procurei alguma coletânea da dupla, mas estão fora de catálogo, uma pena!

Criados em 1972, os personagens costumam aparecer em diversas situações. E o diferencial é que a tirinha acontece em cena única, com frases certeiras que provocam gargalhadas e também muita reflexão!


Interessante como as tirinhas de Frank & Ernest são usadas em provas de todo tipo, de vestibular a concursos. Mas e daí? E daí que quadrinhos são uma forma de arte relevante, criativa, instigante que merece muito mais respeito do que costuma receber! 


Sou suspeita pra falar... adoro HQs,  Graphic Novels, tirinhas, ilustrações, animações por tudo que elas me inspiram! Por isso, há que se aplaudir o trabalho de roteiristas e ilustradores... que nos ajudam a sonhar, refletir, gargalhar! :)

sábado, 13 de julho de 2024

Sinfonia em quadrinhos

Encantadora, "Balada para Sophie", do roteirista português Filipe Melo e do ilustrador argentino Juan Cavia, conta a história do pianista Julien Dubois, aposentado, que vive recluso em sua mansão, tendo como companhias sua governanta Marguerite e o gato Maurice. A história se desenrola, a partir do dia, em que uma jornalista chamada Adeline chega para entrevistá-lo e, depois de um estranhamento inicial, consegue que ele se abra e conte passagens marcantes de sua vida.

Com cores fortes, a bela ilustração torna a leitura mais instigante e nos ajuda a descobrir tanto os trágicos como os doces acordes dessa sinfonia. A rivalidade de Dubois com o pianista François Samson, desde a infância, conduz a narrativa e nos mostra várias facetas da personalidade do protagonista, que aos poucos conquista o leitor. Pelo menos a mim o rabugente maestro conquistou... rsrsrs... Um detalhe que me marcou, por me lembrar de situações pelas quais passei, é quando Adeline chega na mansão e a governanta pede que espere, mas avisa que "o maestro detesta todo tipo de visitas, principalmente, de jornalistas"... vida dura a nossa... rsrsrs...

Voltando à HQ, os personagens são muito bem construídos e, a cada página, nos aguçam a curiosidade, é o caso do morador de rua Piolho que acolhe o jovem pianista, tentando orientá-lo sobre os perigos da cidade. Outra personagem cativante é a governanta Marguerite que, aos poucos, começa a gostar de Adeline e acredita que sua presença faz bem ao maestro, que, em suas palavras,  "apesar do mau humor, tem bom coração". A divertida cena em que Dubois e Marguerite encontram o gato Maurice e o adotam é um charme, texto e ilustração se completam harmoniosamente. Ah... e um momento delicado é quando ele conhece a bailarina Isabelle Montgomery, esposa do rival. Os dois protagonizam belas cenas com leves pinceladas de romance. Temperada por emoção e revelações, a HQ é uma verdadeira aula de como prender a atenção do leitor a cada página! :)

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Peraí... era sonho?

Ilustração: @alikailustra 
Janela aberta, uma brisa balançando a cortina e as ideias fluindo. A máquina de escrever a todo vapor, páginas e páginas sendo escritas, um sorriso de satisfação se abrindo no rosto e, de repente, ela acorda com seu cachorrinho lambendo seu rosto. Não acredito! Pensei que a inspiração tinha voltado! Era um sonho? Mas você não lembra de nada que escreveu no tal sonho? Peraí, você tá falando comigo? E daí? Só estou querendo dar uma força, mas se você não quer, posso, simplesmente, voltar a lamber seu rosto. Acordo de um sonho em que estou escrevendo em meio ao meu atual bloqueio criativo e meu cachorro está falando comigo? O que está acontecendo? Já disse que o melhor seria tentar lembrar de algo que escrevia durante o sonho, mas você prefere ficar indignada porque estou falando! Desde quando você fala, meu querido cachorro? Neste momento, ela acorda assustada, caindo da cama. Eu ainda tava dormindo? Sonhando de novo?

No dia seguinte, ela faz questão de esquecer o episódio do sonho dentro do sonho e resolve ficar assistindo qualquer coisa na TV para desestressar. Só que cada vez que olha pela janela, um cenário diferente se descortina à sua frente, como num passe de mágica. E ela se pergunta, aflita, o que está acontecendo com o mundo? Na primeira vez que abre as cortinas, o dia está nascendo, com cores suaves, mas intensas, e um panda se diverte no balanço, para lá e para cá, feito criança. Como um animal tão raro desse pode estar no meu jardim? Na segunda vez, quando olha pela janela, uma brisa tempera a tarde quente e o jardim havia se transformado em uma piscina, onde um golfinho pula, espalhando água para todos os lados. Como pode o jardim virar uma piscina? Se fosse um lago natural, mas uma piscina precisa ser construída! Na terceira vez, quando reúne coragem para abrir as cortinas, é noite e um enxame de vaga-lumes faz uma dança digna de aplausos, formando figuras geométricas no céu. Assustada, ela fecha a janela e senta na poltrona perto da lareira. Sem entender nada, levanta para pegar um pedaço de lenha, tropeça e... acorda com seu cachorro lambendo seu rosto.

Não acredito que eu estava sonhando de novo! Como pode? Que horas são? Será que não vivo mais acordada? O cachorro olha como se tivesse perdendo a paciência. O que foi? Vai falar comigo de novo? O cachorro faz cara de interrogação. Que bom! Agora devo estar acordada. Peraí, deixa eu olhar pela janela mais uma vez, só pra tirar uma dúvida. Quando afasta a cortina, um panda bebê abre um sorriso enorme e num impulso ela fecha as cortinas e tropeça no cachorro, que diz: ai! Peraí, como cachorro, você não devia dizer au? Que tolice, querida! Você tropeçou em minha pata, doeu, viu? Mais assustada, ela corre para o banheiro e quando bate a porta, acorda com seu cachorro a observando e balançando o rabo. Tô precisando de um café!

Minutos depois, na cozinha, de costas para a mesa, ela estranha um barulho parecido com roncos. Quem será que está roncando? Seu cachorro está na varanda tomando sol. Ela mora sozinha e o aparelho de TV está desligado! Então, como em qualquer lugar do mundo, quando alguém se distrai, o leite derrama por todo fogão! Putaquepariu! Vou ter que limpar isso tudo antes de sair. Neste instante, os estranhos roncos tornam-se mais altos. Quando ela vira com a leiteira na mão, vê um majestoso tigre branco sentado, confortavelmente, à mesa, usufruindo da companhia de um fofinho coala, que mastiga um pão de queijo recheado de folhas de hortelã. Ela olha os dois com cara de incredulidade misturada à admiração. Respira fundo e, novamente, vira de costas para limpar o fogão, agindo como se nada tivesse acontecido. Porém, sua ação é interrompida quando os inusitados convidados pigarram, chamando sua atenção. Incrédula, ela ouve o tigre reclamar sua presença e o coala insistir para que tome seu café com leite antes que esfrie. Ela tenta falar alguma coisa, mas acorda ofegante, como quem sai da água depois de quase se afogar. Seu cachorro brinca com o ossinho que ganhou no dia anterior, em meio às cobertas de sua cama. Esses sonhos são tão reais e, ao mesmo tempo, tão bizarros! O que é isso, meu? Preciso dormir por horas seguidas, mas sem sonhar, por favor! Ela cobre a cabeça com o lençol e pega no sono.

Assustada, ela senta na cama. Que horas são? Preciso de meu café da manhã, espero não encontrar nenhum animal selvagem refestelado à mesa. Vamos! O cachorro larga o brinquedo e corre atrás da dona. Na porta da cozinha, ela hesita, afinal, a experiência de há pouco parecia tão real. Decidida, entra e suspira aliviada, tudo está em seu lugar, portanto, aquilo foi um sonho mesmo. Bizarro, mas um sonho. Vem cá, vou colocar sua ração, enquanto isso, vou ao banheiro fazer xixi, lavar o rosto, escovar os dentes, tudo que uma pessoa, minimamente, civilizada deve fazer ao levantar da cama. Ela sai e o cachorro se joga na panela de ração com uma voracidade sem precedentes. Olhando sua imagem no espelho do banheiro, ela reflete sobre os últimos acontecimentos. Cheia de interrogações e exclamações, faz sua higiene e volta pra cozinha. Seu cachorro está esparramado no tapetinho da área de serviço, cochilando. Comeu tudo! Coitadinho, devia estar com muita fome. Que mãe mais desnaturada que eu sou! Agora, também preciso comer, meu estômago está roncando! Ela prepara ovos mexidos, suco de laranja, coloca duas fatias de pão de forma na torradeira, liga a cafeteira e leva o leite ao fogo. Quando liga a boca do fogão, um arrepio percorre sua espinha. Será que quando virar pra mesa vai ter uma surpresa de novo? Ela vira devagar e dá um sorriso tenso. Que ótimo! Estamos sozinhos! Depois de saciar sua fome, fica por alguns instantes olhando a mesa ainda posta. Nossa! Quem olha a quantidade de comida que tem nesse café da manhã vai pensar que foi feita para um batalhão! Tenho que diminuir essa empolgação da primeira refeição, sorte que o pão e seus recheios duram bastante, basta guardar na geladeira. E os ovos mexidos, faço na quantidade certa. Então, qual o problema? O problema é ter de arrumar tudo e lavar a louça quando se está com pressa por ter acordado absolutamente atrasada. Resignada, ela começa a tirar a mesa, levando alguns itens à geladeira e colocando outros na pia. Lavar a louça é um prazer, mas só quando tem tempo, porque quando está apressada costuma quebrar pires, xícaras e o que mais escorregar de suas mãos ansiosas. Desta vez, conseguiu se controlar, mas assim que coloca o pratinho de sobremesa no escorredor, ouve um barulho na área de serviço e sem pensar corre, imaginando que seu cachorro está em apuros. Ao passar para a área, vê Chewbacca, de Guerra nas Estrelas, com seu cachorro no colo. Fica perplexa, pois este é um de seus personagens favoritos da saga, ao mesmo tempo, sente que precisa salvar seu cachorro. Então, ela se lança sobre o personagem e quando está quase arrancando seu cachorro dos braços peludos do co-piloto da Millenium Falcon leva um sutil safanão que a desequilibra. Ela faz menção de atacá-lo novamente, quando seu resmungo característico aumenta de intensidade e ela acorda, na sala, com a campainha tocando, incessantemente. Levantando do sofá meio tonta, abre a porta e recebe uma bronca do tamanho do Universo. Seus pais não param de falar, estão apreensivos, afinal, faz dias que tentam contato com ela, mas não conseguem. Onde você estava, menina? Calma, não sei, acho que dormindo, sonhando mil sonhos. Sonhando? Tem certeza? O que você fez nos braços? Ela olha os arranhões. Ah! Devo ter me machucado no cacto que meu cachorro trouxe da área de serviço. Como assim, ainda não entendi! Pai, é que eu devo ter dormido muito, ele ficou solitário e resolveu trazer o cacto pra dormir com a gente. Você tomou alguma coisa, filha? Não, mãe, só vergonha na cara. Explique melhor. Estava trabalhando muito, há meses seguidos, anos até, sem férias. E aí? E aí que eu chutei o balde no trabalho e resolvi ser feliz num ano sabático, sempre achei isso chique pra caramba! Mas e suas contas, quem vai pagar? Calma, pai, fique tranquilo, tenho reserva, afinal, esse tempo todo só trabalhei, consegui guardar um pouco de grana. Entenda que um pouco de grana não é exatamente o que se pode chamar de tranquilidade. Mas, pai, é só um período de férias prolongado e mais noites de sono tranquilo, daqui um ano volto ao trabalho, em qualquer tipo de ocupação e foda-se. Olha a boca, menina! Mãe, a senhora vive falando palavrão. E daí? Os filhos são a evolução, não é o que dizem? Você devia ser mais bem-educada que eu. Que nós, querida! Ih! Sei lá, não sei se evolui em alguma coisa, às vezes, penso que vocês mereciam uma filha muito melhor. Bobagem, mas voltando a esses arranhões, tem certeza que não quer nos contar nada, filha? Mãe, nem sei por onde começar! Comece nos oferecendo um café! Ahahaha… claro, pai, vamos pra cozinha. Não se preocupe, se tiver louça na pia, seu pai lava rapidinho. Eu? Por que não diz nós dois lavamos, querida? Porque eu fiz isso em casa esta semana inteira contrariando nosso estatuto, segundo o qual devemos lavar a louça alternadamente, querido! Nossa, depois dessa, vou lavar até as paredes! Ahahaha… não precisa exagerar, pai! Tá tudo bem com minha cozinha, quer dizer, espero... :)

sábado, 6 de julho de 2024

Um viking adorável

Hagar, o horrível, de Dik Browne, é daquelas geniais tirinhas de jornal que nos acompanham pela vida... rsrsrs! Adoro que estejam reunidas em livros pra relembrar em detalhes as histórias e os personagens! Li esse primeiro em um fôlego só... sei que se fosse na companhia do Hagar, ele ia pedir uma caneca de cerveja... ahahaha... mas a leitura é tão divertida e fluida que por mais que tentei economizar pra não acabar rápido, quando vi já tinha lido tudo e, melhor, gargalhando com as situações inusitadas desse viking fanfarrão! E esse é só o primeiro volume, dá vontade de comprar todos os outros... rsrsrs...


A relação com a esposa Helga é um caso à parte! Ela tenta cuidar do jeitão desleixado dele e sempre acaba irritada com a fome desenfreada e com a falta de vontade de Hagar em fazer dieta. O casal protagoniza cenas hilárias, inclusive com os filhos, o estudioso Hamlet e a dramática Honi, que vive encantada pelo menestrel Lute, cuja voz só ela mesmo admira... rsrsrs... enfim, a família rende muitas risadas.

Outro personagem impagável é Eddie Sortudo, amigo pra todas as horas e companheiro de Hagar nas invasões. Diferente do padrão viking de homens musculosos, altos e destemidos, Sortudo é magro, baixo e ingênuo, mas sua lealdade nos presenteia com cenas memoráveis! 

Criativa e marcante, a obra de Dik Browne merece muitos aplausos. Com personagens bem construídos e capazes de nos atrair por páginas e mais páginas, Hagar é indispensável pra quem gosta de HQs de respeito! Por isso, quero instigar os que não conhecem a mergulhar no mundo desse viking adoravelmente horrível... ou seria horrivelmente adorável... decidam... ahahaha! :) 

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Imaginação e liberdade

Ilustração: Jordi Lafebre
Dizem que Julia é introspectiva. Na verdade, ela é bem expansiva quando quer, mas, ultimamente, prefere passar as horas de lazer mergulhada na leitura. Lê de tudo, desde obras de História, passando por biografias, graphic novels, clássicos da Literatura de todos os continentes, ficção fantástica, até romances de época, daqueles best-sellers que aparecem em listas de mais vendidos pelo mundo. Basta o livro, qualquer que seja o estilo, chamar sua atenção que ela o abraça! O gosto pela leitura só se compara à paixão por sua bicicleta, como diz seu pai, duas magrelas se entendem.

Este ano, as férias escolares, sempre agitadas pelas viagens em família ou pelas excursões estudantis, estão bem diferentes. Talvez Julia também esteja diferente. Sua avó virou estrela e foi se juntar a seu avô, que ela nem chegou a conhecer. Sua avó era sua companheira de leituras, foi quem a introduziu no vasto mundo da Literatura e também quem lhe presenteou com a tão querida bicicleta. A senhora de cabelos branquinhos costumava dizer que assim como os livros dão asas à imaginação, a bicicleta dá a incrível sensação de liberdade como deve ser a do pássaro ao voar.

Imaginação e liberdade de pensamento são essenciais para uma vida mais doce e cheia de possibilidades, dizia a avó, que sempre arrumava um jeito de Julinha passar em sua casa para lerem juntas um de seus exemplares da coleção das irmãs Brontë, com direito a café da tarde e passeio de bicicleta pelas alamedas. Sim, sua avó andava de bicicleta desde jovenzinha, chegou a fazer até trilhas que lhe renderam cicatrizes nas canelas… e pedalou até não ter mais condições físicas, mesmo assim, dizia continuar tendo a mesma sensação de liberdade só de se imaginar pedalando.

Olha aí de novo: imaginação e liberdade de pensamento, ingredientes imprescindíveis para uma vida plena, de horizontes abertos e infinitas possibilidades. Porém, este ano, nas férias de Julia, nada de leitura conjunta, nem cafés da tarde animados, muito menos pedaladas pelas alamedas. O momento é de reflexão e ajustes para saber como se comportar nesse mundo hostil e, por vezes, insensível, sem a pessoa que mais a entendia na vida.

Ela não tem visitado o mais charmoso entre os edifícios do Barri de Gracia, onde sua avó morava no simpático apartamento avarandado de número 7, agora, colocado à venda. Mil pensamentos passam por sua cabeça, mas as únicas coisas que a acalmam são a bicicleta e o exemplar autografado de "Últimas tardes com Teresa", do escritor catalão Juan Marsé. Obra que a avó tinha um carinho especial, mas não queria que ela lesse antes de amadurecer, pois o autor merecia um entendimento mais profundo.

A perda trouxe o início do amadurecimento e, pela primeira vez, Julia saiu sozinha pedalando pelas alamedas do bairro até encontrar um cantinho, onde, finalmente, pôde desvendar a aguardada leitura. E ali, montada na bicicleta, passou a tarde inteira na companhia do livro que, a partir de então, a reconectava à sua melhor amiga... :)

* Esta doce crônica foi inspirada na bela ilustração do grande Jordi Lafebre a quem admiro imensamente por seu trabalho e a quem agradeço a delicadeza de permitir que eu publicasse sua menina, a quem batizei de Julia... ❤️