quarta-feira, 24 de julho de 2024

Literatura e reflexão


José Saramago é encanto, adoro a forma como ele conta uma história, com as falas dos personagens e do narrador enlaçadas no mesmo parágrafo. Os capítulos são densos e, ao mesmo tempo, fluem leves e envolventes. Fui conquistada logo nas primeiras páginas de “A Caverna” (edição portuguesa... presente do meu irmão Gé... ❤).

Inspirada no mito da caverna de Platão, a obra mostra como o capitalismo e a globalização impactaram e continuam impactando as economias locais. Em entrevista à Folha de S.Paulo, na época do lançamento (novembro de 2000), Saramago disse de forma simples e certeira: "... Na minha caverna, os personagens vão de fora para dentro. Quando chegam lá dentro, compreendem que aquele mundo não pode ser o deles. O livro vai em tendência contrária à sociedade atual. O autor deste livro quer que voltemos as costas para o que é cômodo, o que é errado. O autor quer que as pessoas não renunciem a pensar no que está a acontecer." É isso, os personagens escolhem não aceitar uma rotina sem vida, sem identidade, fora da realidade como muitos vivem, inclusive, hoje, presos em cavernas virtuais.

Cativantes, os personagens são muito ricos de sentimentos e têm suas personalidades desvendadas ao longo da narrativa. O protagonista, o oleiro Cipriano Algor, homem simples, cheio de filosofias, nuances e emoções guardadas, está sempre refletindo sobre tudo e todos à sua volta.

Marta, a filha de Algor, se empenha para salvar a olaria da família e não mede esforços para ajudar o pai nos desafios que enfrentam. Ela tem uma relação muito bonita com o pai e também com o marido Marçal, que trabalha como segurança no chamado Centro, um gigantesco empreendimento, símbolo do capitalismo, do consumismo e de todos os "ismos" que tornam o mundo mais desumano e até irracional.

Há preciosos momentos de reflexão, como no trecho: "... diz-se que cada pessoa é uma ilha, e não é certo, cada pessoa é um silêncio, isso sim, um silêncio, cada uma com seu silêncio, cada uma com o silêncio que é..."

Mesmo as passagens mais divertidos não deixam de ser reflexivas e provocativas, principalmente, quando o foco é o cachorro Achado, que apareceu na casa da família e foi adotado. Achado é um caso à parte, inclusive, porque o narrador mostra, com sensibilidade, suas reações e aflições em sua relação com o dono, Cipriano, com Marta, Marçal e, mais adiante, com a vizinha Isaura. 

Separei dois trechos como uma espécie de aperitivo para instigá-los à leitura, o primeiro: "Às vezes, penso que talvez fosse preferível não sabermos quem somos, disse Cipriano Algor, Como o Achado, Sim, imagino que um cão sabe menos de si próprio do que do dono que tem, nem sequer é capaz de reconhecer-se num espelho, Talvez o espelho do cão seja o dono, talvez só nele seja possível reconhecer-se, sugeriu Marta, Bonita ideia, Como vê, até as ideias erradas podem ser bonitas, Criaremos cães se o negócio da olaria falir...". O segundo: "... Ao contrário do que em geral se pensa, os cães, por muitos cuidados e mimos de que sejam alvo, não têm a vida fácil, em primeiro lugar porque até hoje ainda não conseguiram chegar a uma compreensão ao menos satisfatória do mundo a que foram trazidos, em segundo lugar porque essa dificuldade é agravada continuamente pelas contradições e pelas instabilidades de conduta dos seres humanos com quem partilham, por assim dizer, a casa, a comida, e às vezes a cama". 

Em resumo, sem medo do trocadilho... Achado é um achado! É um prazer conhecer, por meio do narrador, suas inquietações enquanto cão. 

Saramago conversa o tempo inteiro com seu leitor e nos brinda com pérolas como esta: "Autoritárias, paralisadoras, circulares, às vezes elípticas, as frases de efeito, também jocosamente denominadas pedacinhos de ouro, são uma praga maligna, das piores que têm assolado o mundo. Dizemos aos confusos, Conhece-te a ti mesmo, como se conhecer-se a si mesmo não fosse a quinta e mais dificultosa operação das aritméticas humanas...". 

A maneira natural como o autor interage conosco, seus leitores, nos aproxima de sua arte e de seus personagens e, no meu caso, aumenta ainda mais a admiração que tenho pelo grande e saudoso escritor português, nascido na aldeia de Azinhaga. Salve Saramago! :)

Nenhum comentário:

Postar um comentário