terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Eu posso! Por que não? - PARTE 1

Está Adão sentado em sua cadeira de balanço, no terraço de casa, quando  um pássaro exótico em seu jardim. 

– Mas que raios é esse bicho? 

O pássaro tem cabeça de pelicano – e seu característico bico enorme – com corpo de faisão – elegante e de bela plumagem. O homem se pergunta como uma criatura tão desequilibrada consegue voar. 

Curioso, Adão levanta com todo cuidado, mantendo os olhos grudados no tal bicho. Quando tenta se aproximar mais, só ouve um bater de asas tão rápido que não é capaz de enxergar o voo. 

– Como assim? Eu não desgrudei o olho dela e não consegui ver a praga voando? Tem alguma coisa muito errada acontecendo aqui. 

Ele volta a sentar na cadeira de balanço e fica procurando por ela. E fica assim, como um periscópio, virando o pescoço para todos os lados e nada de achá-la. 

– ADÃO! 

O grito quase derruba da cadeira. Irritado, ele grita de volta. 

– O QUE É? 

– Acabei de tirar o bolo do forno, o café tá fresquinho. Vem logo, hómi! 

Ele respira fundo vai pra cozinha. 

– E precisava gritar desse jeito, mulher? 

– Eu chamei você como faço todos os dias, mas parece que tava hipnotizado, não respondia, fiquei assustada! 

– Ah! Ótimo... aí resolveu me assustar também? 

– Não quero discutir, quero tomar o café da tarde com você. Vamos aproveitar que não temos visitas. Hoje, quero sossego. 

– Olha que se sou eu a falar isso, você diz que eu sou mal-humorado, antissocial e toda a ladainha de sempre... 

– Não fala assim, só não gosto que você diga isso na cara das visitas, mas confesso que estou cansada de receber esse monte de gente toda hora... 

– Você sabe que falando assim, te amo mais, né? 

– Ahahaha... Adão! Também te amo... senta aqui... vamos saborear nosso momento. 

– Tá me deixando mais animado, Amália! 

Os dois caem na risada, enquanto aproveitam o café da tarde. Até esquecem do mundo lá fora. Inclusive, Adão parece nem lembrar da intrigante ave exótica que viu no jardim. Depois da tarde divertida, o casal resolve dançar e cantar sucessos internacionais em um inglês que só os dois entendem. E fecham a noite com filme e pipoca. 

No dia seguinte, Adão acorda antes de Amália. Quando está enchendo a chaleira, olha pela janela e vê a ave comendo sementes, embaixo da jabuticabeira. Fica paralisado. 

– Você de novo? Pensei que tivesse sonhado ou fosse efeito do calor na moleira. 

– ADÃO! 

Como se saísse de um transe, ele se assusta com o grito da mulher e só então percebe que a chaleira transbordou e seu pijama está todo respingado. 

– Como você gosta de me assustar, hein? 

– O que você tá vendo nessa janela de tão interessante pra deixar a torneira assim aberta, desperdiçando água? 

– Nada... desculpe, tava distraído. 

Ele leva a chaleira para o fogão, enquanto ela corre até a janela curiosa, mas fica desolada. 

– Não entendo... 

– Nem eu, querida! 

– Não tem nada de novo nesse quintal que você já não conheça! 

– Não!? 

– Claro que não. Por quê? Vai me dizer que você tava vendo um animal exótico ou um ET? Ahahaha... 

– Como assim? 

–  brincando, amor! Tá assustado? Eu que deveria estar com esse seu jeito estranho olhando pela janela logo cedo... 

– Claro que não tem nada lá fora. Eu tava distraído, pensando em sei lá o que. 
Ele se aproxima e abraça a mulher olhando pela janela e nada do bicho esquisito. Durante toda a manhã, Adão permanece na sala, lendo jornal e assistindo televisão. 

–  te estranhando... faz tempo que... 

– ... não falo que quero voar? 

– Ahahaha... bobo! Eu ia dizer que faz tempo que você não fica dentro de casa, assim entocado, sem nem abrir as cortinas! 

– Ah! Resolvi que não quero dar bom dia aos vizinhos. 

– Ahahaha... se eu não te conhecesse, diria que está me escondendo alguma coisa, mas tudo bem, vou cuidar do jardim. 

– Não! 

– Por que não? 

– Fica aqui comigo. 

– Adão, se você quer evitar os vizinhos, o sol e o dia lindo que está lá fora, não tenho nada a ver com isso. Vou cuidar das minhas flores que eu ganho mais. 

A mulher  um beijo na testa do marido e sai assoviando e arrastando os chinelos. 

Vários dias se passam sem que a ave exótica apareça no quintal. Mas Amália ainda se incomoda quando o marido olha pela janela da cozinha, como se procurasse algo. 

– ADÃO! 

– Que mania de me assustar, Amália! 

– Ih! Ele me chamou pelo nome, deve estar preocupado com alguma coisa mesmo... será que alguma ideia bizarra está voltando a povoar a cabeça sonhadora de meu excelentíssimo marido? 

– Ironia logo cedo é dose, hein? Quer que eu continue te chamando de Amália? 

– Por favor, eu tava brincando, amor! Mas que a sua cara não estava muito confiável olhando pela janela... 

– Todo dia eu olho pela janela enquanto encho a chaleira, qual o problema? 

– Problema? Ah! Vá. Para com isso que hoje acordei animada... e pensando em... sei lá... 

– Uau! Adoro... nem sei o que émas animada e pensando em coisas que não consegue denominar... 

– Ahahaha... bobo! Estou pensando em ir à loja comprar lã pra começar a pensar nos cachecóis... 

– Nossa! Cachecóis? O verão está começando agora! 

– Mas as cores do inverno já estão aí... quero comprar logo! 

– Vai estocar lã? Ahahaha... está se preparando pra neve? 

– Ah! Faz logo esse café, vai! 

 Eu achando que tava com as mais loucas ideias pra uma tarde quente comigo e ela pensando em cachecol... lamentável! 

– Não deixa de ser quente... ahahaha... 

Os dois tomam o café da manhã e Adão resolve ler o jornal em sua cadeira de balanço no terraço, enquanto Amália vai à loja comprar os novelos de lã com uma vizinha. 

A manhã está tranquila, como trilha sonora só o canto dos pássaros e o latido de cães ao longe. As notícias, em sua maioria nada agradáveis, distraem Adão por um bom tempo, a ponto dele nem perceber que alguém o observa. 

– E  Adão? 

Assustado, ele identifica o dono da voz e antes de cumprimentá-lo se irrita por ter escolhido o terraço 
pra ler seu jornal. 

– Bom dia! 

– Não quero atrapalhar sua leitura, só queria saber se o senhor viu... 
Adão fica paralisado, pensando se o vizinho também viu a tal criatura. 

– Vi o quê? 

– Meu gato... ele saiu ontem à tarde, mas não voltou até agora... 

– Ah! O seu gato! Não, não vi... 

– Ah! Tudo bem, vou procurar lá perto do bar... 

– Ele bebe? 

– Ahahaha... esse é o Adão que eu conheço... bom dia! 

Adão acena para o vizinho e volta a ler, pensando o que fez para merecer pessoas tão esquisitas. Afinal, ele faz a pergunta se o gato bebe há pelos menos uns 10 anos e o homem ri como se ouvisse pela primeira vez. 

Depois de ler o jornal inteiro, incluindo os classificados, Adão dá uma espreguiçada e parte pra cochilada costumeira. Antes quconsiga relaxar, um barulho provoca um arrepio pelo seu corpo. Quando abre os olhos, lá está a ave exótica olhando pra ele a poucos centímetros de distância. Suas penas são brilhantes e coloridas e as patas tem garras no mínimo estranhas, as unhas parece que foram delicadamente pintadas de vermelho. Adão fica ali parado por alguns minutos, ambos trocam olhares assustados e, ao mesmo tempo, curiosos. 

– De onde será que vem essa criatura? 

– Que coincidência... é o que estou me perguntando sobre você. 

Adão dá um pulo da cadeira e se encosta na parede. 

– Você fala? 

– E por que não falaria? Pensam que só vocês falam, humanos? 

– A fala é uma das características que nos torna humanos! 

– Inteligente e burro ao mesmo tempo... nada de novo, só mais um! 

– Escuta aqui... quem é você pra me chamar de burro? 

– Se é inteligente, deveria saber! 

A ave bate as asas tão rápido que Adão, mais uma vez, não consegue visualizar o voo. E fica sem reação, encostado na parede.  

– ADÃO! 

Ele dá um pulo e logo o susto dá lugar à irritação. 

– Precisa gritar desse jeito, que mania! 

– Calma! Você está pálido, suando frio... o que aconteceu aqui enquanto, ingenuamente, eu comprava meus novelos de lã, hein? 

– Não aconteceu nada! Só você chegando sorrateira e gritando meu nome! Acho que até a cidade vizinha já sabe que aqui mora um Adão! 

– Ah! Não me enrola... 

– Eu estava aqui lendo meu jornal... 

– Isso eu sei! Mas e? 

– ... e nada! 

– E por que você está assim? 

– Assustei com seu grito, não está acostumada? Qualquer dia, você ainda vai me fazer desmaiar... 

– Está me enrolando, mas tudo bem. Vou guardar as sacolas no quarto e já volto. Prepare-se porque nossa conversa vai continuar! 

Amália entra na casa e, no mesmo instante, a ave aparece ao lado da jabuticabeira... sorridente. Sim, no caso dessa ave, o sorriso é plausível. 

– E aí? Vai contar pra humana que estava conversando com o bicho estranho aqui? 

Adão fica perplexo e quando Amália volta, aponta para a jabuticabeira. 

– Olha... 

– O que, Adão? Só estou vendo a jabuticabeira. 

A ave dá um sorriso para ele e some diante de seus olhos incrédulos. 

– ADÃO! 

– Para com isso... que mania de gritar... você olhou quando eu falei? 

– Claro que olhei... nossa jabuticabeira linda! Mas será que ela te emocionou tanto assim a ponto de suar frio e ficar com esse olhar distante? 

– Você viu a jabuticabeira? Só? 

– E tinha o que mais pra ver? Você está me deixando preocupada... 

Tentando disfarçar, ele não cogita, pelo menos por enquanto, contar à Amália com quem estava conversando pouco antes dela chegar. 

– Eu fiquei feliz com a jabuticabeira lotada, foi só isso... e não me olhe assim, porque eu não estou suando frio, estou suando de calor mesmo... 

– Olha, eu vou voltar a pensar nos meus cachecóis, porque realmente você está bem esquisito hoje. 

Ela entra na casa e Adão fica por alguns minutos olhando para o quintal, mas nada da ave falante. 

– ... e ainda sorri! 

– Quem sorri, Adão? 

– Aquele vizinho que me pergunta do gato há anos... vou aí te contar... 

Adão pega o jornal e entra ressabiado. 

Nos próximos dois dias, Adão e Amália vivem atarefados com visitas e conversas animadas. Pelo menos, dessa vez a casa lotada foi uma diversão. 

– Nossa! Adorei... fazia tempo que não ríamos tanto, hein? 

– Ah! É verdade... adoro esse pessoal. Mas o que mais provocou risadas foi o Cosme lembrar daquela vez que você bebeu tanto que disse que podia voar! 

– Não vejo graça nessa história! 

– Por que, amor? 

– Amália! Essa história é muito velha, perdeu a graça! 

– Ah! Nem vem... o Cosme contando é impagável até hoje! 

– Tá... então, me diz... qual é a graça de um ser humano querer voar? Isso é histórico! 

– Ahahaha... pois é, realmente é histórico... você diz isso desde aquela época. 

– Como você é engraçadinha! Ninguém acreditava em avião e agora fica todo mundo pagando pau nos aeroportos... 

– Ahahaha... pagando pau pra avião só você, amor! 

– E daí? Gosto de avião, mas acho que o ser humano ainda vai voar... 

– Beleza, Adão! Então, vamos tomar um banho rápido pra relaxar e dormir? 

– Incrível, passam os anos e você desconsidera essa minha tese... 

– Que tese, amor? Você é só o meu maluco que quer voar... isso lá é tese que se apresente? 

– Vai tomar banho! 

– Vamos... ah... vem, Adão... vem com sua... 

– Eva, não! Por favor... piada velha já chega a do gato do vizinho! 

Amália abraça o marido e os dois vão para o banheiro rindo. A noite foi de carinho e risadas. Mas quando pegou no sono, Adão sonhou com a tal ave. No sonho bizarro, ele aprendia a voar. Sim, e a mistura de pelicano com faisão que costuma aparecer em seu quintal era o instrutor de voo. Nas aulas teóricas, ele ficava pensando: faisão é tão desajeitado pra voar e com essa cabeça de pelicano... nunca consigo vê-lo voando, será que voa mesmo? Neste instante, o professor bate com uma régua na lousa e pede atenção. Adão fica perplexo e começa a copiar os textos em seu caderno. Estranhamente, ele escreve a lápis. E pensa... há quanto tempo não escrevo a lápis? E mais uma vez, a ave chama sua atenção. Depois de copiar a lição, o professor convida-o para ir para a pista começar as aulas práticas. Mas antes, ele recebe uma mochila com um par de asas longas – leves como pluma – acoplado. Tudo pronto, mas quando a ave vai dar as primeiras instruções para o treino em terra, Adão acorda e se desespera. 

– NÃO! 

Amália acorda assustada. O relógio marca cinco horas da manhã. 

– O que foi? Teve pesadelo? 

– Pior... 

– O que pode ser pior do que um pesadelo? 

– Acordar no melhor do sonho! 

Amália senta na cama, liga o abajur e olha com cara de poucos amigos. 

– E eu posso saber que tipo de sonho era esse? 

– Ah! Não se preocupe, não tive um sonho erótico...  

– Não estou preocupada, estou curiosa... o senhor pode me contar? 

– São cinco horas da manhã. Vamos dormir mais um pouco, quem sabe o sonho continua, prometo 
que te conto mais tarde... 

Ele deita e em poucos segundos pega no sono. Irritada, ela desliga o abajur e fica acordada por um tempo ouvindo o galo do vizinho cantar. E se irrita ainda mais quando os primeiros raios do Sol entram pelas frestas da janela. 

– Que desaforo... olha como ele dorme? Ah, vou levantar!

Continua...

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