Depois de quase uma hora, Adão aparece na cozinha esfregando os olhos e se espreguiçando. Amália está abatida, com uma caneca de café com leite em uma das mãos e a espátula na outra.
– Bom dia, amor!
– Só se for pra você!
– Bom dia, amor!
– Só se for pra você!
– Calma, larga a faca pra falar comigo... ahahaha
– Isso é uma espátula, bobão!
– Nossa, que violenta... o que foi? Não dormiu bem?
– E você ainda pergunta?
– O que aconteceu? Teve pesadelo? Por que não me chamou?
– Ah! Eu não acredito! Você que me acordou de madrugada gritando... e teve o desplante de não me contar o sonho, dormiu e me deixou acordada. Não consegui pegar no sono, levantei há mais de uma hora!
– Eu acordei durante a madrugada?
– Ah! Não vai me dizer que não lembra?
– Não!
– Ah! Você não quer é me contar esse sonho... e depois ainda disse que não era erótico.
– Eu disse que não era erótico?
– Não falei? Pode contar agora!
– O que eu quero dizer é que não lembro de ter acordado e nem dito que o sonho não era erótico!
– Tá, entendi! Mas e aí? Vai contar o sonho erótico ou vou ter que jogar essa caneca de café com leite fervendo na sua cara?
– Ahahaha... se eu não te conhecesse, diria que está brava comigo!
– Eu estou muito brava com você, eu estou puta com você!
– Adoro...
– ADÃO!
– Pronto, voltou ao normal! Você deve ter algum fetiche em gritar meu nome... sei lá, deve lembrar da cobra, da maçã proibida... ahahaha...
– Chega! Vou pra ioga... preciso me equilibrar... mais tarde a gente conversa.
– Você não vai tomar café comigo?
– Estou tomando café há mais de meia hora esperando o belo adormecido aí.
– Ahahaha... obrigado pelo belo! Cuidado pra não tomar café demais, depois não dorme à noite e põe a culpa em mim.
Amália joga a espátula na direção do marido, que desvia rindo, mas indignado.
– Ó a violência!
Os dois se abraçam, mas ela sai da cozinha contrariada. Adão fica pensativo. Quase na hora do almoço, Amália volta de sua aula de ioga, bem mais animada. Adão está terminando de fazer o almoço.
– Mas que prendado!
– Que bom que está sorrindo! Você vai adorar, fiz tudo que você gosta!
– Está querendo me agradar assim por quê?
– Como assim?
– Não pense que esqueci o tal sonho...
– Que sonho? Ah! Eu não acredito que você ainda está pensando nisso... eu nem lembro direito o que sonhei.
– Olha... vou ignorar essa tentativa de me enrolar, vou tomar um banho rápido... conversamos durante o almoço, certo?
– Claro... sempre conversamos durante o almoço!
– Não adianta se fazer bobo... vamos conversar sobre esse raio desse sonho, certo?
– Como quiser, querida!
Ela faz uma careta e vai para o banheiro. Adão continua arrumando a mesa, mas agora a descontração passa a ser preocupação. E pra tentar se acalmar, ele fala sozinho enquanto arruma os talheres na mesa.
– Será que eu conto pra Amália o que está acontecendo comigo... quer dizer, sei lá se está acontecendo alguma coisa comigo. O fato é que eu vi algumas vezes uma ave estranha em nosso quintal. Até aí, beleza. Eu sempre assisti documentários sobre animais, mas existem milhares de espécies no mundo. De repente, essa é só uma das muitas que não conheço. Só que tudo ficou ainda mais esquisito quando a ave resolveu falar comigo. E agora esse sonho... onde já se viu uma ave exótica me ensinando a voar... tudo bem que obviamente ela domina a arte, mas sei lá. Eu quero voar desde criança, mas até aí a gente quer tanta coisa...
Neste instante, um barulho chama a atenção de Adão, que olha e se assusta quando vê a ave com cara de quem vai dizer mais algum desaforo. Mesmo assim, ele vai até a janela e abre um pouco o vidro.
– Oi! Tudo bem?
– Não disfarce sua inquietação, humano. É claro que você não está feliz em me ver.
– Imagina! Desde a primeira vez que vi você, só quero entender por que...
– Por que o quê?
– Por que comigo! O que eu fiz pra merecer uma visita tão bizarra como você... inclusive nos meus sonhos... socorro!
– Não seja tolo!
– Tá bom, mas pode me responder? Por que eu? Tanta gente no mundo e você vem sei lá de onde falar comigo, mas não me diz exatamente o que quer de mim!
– Você sonhou e não sabe? Estou aqui para ensiná-lo a voar, homem! Pensei que entrando em seu sonho facilitaria sua compreensão, mas pelo jeito...
– Dá pra você parar de me tomar como um babaca que não entende nada?
– Claro que dá... desde que você pare para pensar... você sabe porque estou aqui... estou à sua disposição para ensiná-lo a maravilhosa arte de voar, bater asas, planar pelos ares!
– Mas eu nem tenho asas!
Neste instante, Amália grita do banheiro.
– ADÃO!
– O que foi?
– Esqueci a toalha...
Ele olha para a ave e fica sem saber o que fazer.
– Vai logo... as humanas quando pedem a toalha, vocês já sabem o que elas realmente querem... não perca tempo... ahahaha.
– Mas que indiscrição!
Adão fecha a janela e corre para o banheiro. Depois do banho e do almoço, a tarde passa tranquila, com os dois assistindo a um filme na sala, entre cochilos e risadas. À noite, eles deitam cedo, Amália quer descansar pra acordar bem cedo e começar a tricotar seus famosos cachecóis.
– Sabe o que eu tava pensando?
– O quê?
– Lembra daquela caixa enorme que você tem com umas lembranças, coisas de infância e juventude?
– Ahahaha... lembro! Do jeito que você fala, parece que nós somos dois velhinhos de 80 anos!
– Exagerado!
– Não precisa ficar brava... o que tem minha caixa?
– É que ela seria ideal pra eu guardar meus novelos de lã, organizados por cor e tipo... pra facilitar meu trabalho.
– Que trabalho?
– Eu vou começar a fazer os cachecóis... você sabe muito bem que já tenho encomendas!
– Ah! Mas não sabia que o negócio era tão sério. Pensei que essas encomendas eram só da nossa família...
– Claro que não! Inclusive, tenho clientes que fazem ioga comigo...
– Tudo bem! Mas por que a minha caixa?
– Ah! Vai! Até parece que você se liga tanto assim para caixas organizadoras.
– Não ligo? É que organizei todas minhas coisas nessa bendita caixa pra você não reclamar
que eu tô atrapalhando as suas centenas de caixas espalhadas pela casa. Só tenho aquela!
– Nossa! Tudo bem! Não está mais aqui quem falou...
– Ahahaha... tô brincando... mas agora não vou mexer em nada. Amanhã, eu vejo.
– Amanhã bem cedinho!
– Sim, senhora! Só quero ver a porcaria que você vai me apresentar pra trocar pela minha preciosa caixa!
Amália dá um tapa nas costas de Adão. Desliga o abajur e vira de costas pra ele.
– Virou de costas pra dormir de conchinha?
– Ahahaha... para, Adão! Quero ficar brava com você neste instante, entendeu?
– Ahahaha... nem vem.
Os dois se enroscam na cama e depois de risadas e muito carinho, adormecem. Na manhã seguinte, depois do café, Amália fica olhando para Adão por um bom tempo sem dizer nada. Primeiro, ele faz uma cara de safado, mas como ela não demonstra interesse, resolve falar.
– Que constrangimento, mulher! O que você quer com essa cara enigmática?
– Você não lembra?
– Do quê?
– A caixa!
– Ah! A caixa, não! A m-i-n-h-a caixa você quer dizer, certo?
– Você vai regular? Já vi que vou ter que procurar outro jeito pra arrumar meus novelos de lã...
– Você não acha que está muito sensível ultimamente? É só uma caixa, amor!
– Pois se é só uma caixa, é simples, troque comigo e eu não te encho mais o saco!
– Ó a grosseria! Tá bom... mas posso ler o jornal antes?
– Você já viu o jornal na TV!
– Vou perguntar mais uma vez: posso ler o jornal antes?
– Pode, ADÃO!
– Tava demorando pra gritar meu nome hoje, hein?
– Ah! Vá se lascar. Quando o senhor estiver disponível me avisa!
Ele respira fundo e vai para o terraço com o jornal debaixo do braço. Ela vai para o quarto, arrastando os chinelos e resmungando.
Depois de ler, Adão deixa o jornal em cima da cadeira de balanço e vai para a sala calmamente. Amália está sentada em uma poltrona perto da janela, separando os novelos por cor.
– E aí, artesã?
– Ah! Nossa! Já leu? Só três horas lendo seu querido jornal, amor?
– Pra que a ironia, hein?
– Não quero papo, quero a caixa!
– Calma aí! Primeiro, vou ter que ver direitinho tudo o que tem lá dentro, recordar...
– Limpar as lágrimas...
– Vai continuar irônica? Então, nem vou me dar ao trabalho de continuar o assunto.
– Não! Por favor!
– Ah... melhorou! Mas pode ficar aí com seus novelos que eu vou para o quarto explicar para minhas
doces lembranças que elas serão desalojadas.
Amália dá um suspiro enfastiada. Adão vai para o quarto assobiando. E quando chega na porta, lá está ela... sua caixa de recordações descansando em cima da cama e pronta para novas descobertas.
Dentro da caixa, todo dia tipo de lembrança; cadernetas escolares; pião; dois fantoches, com os quais ele adorava criar histórias; os cadarços da chuteira que usou no campeonato entre escolas, quando ganhou uma medalha de melhor meio de campo da temporada; figurinhas de jogadores de futebol; alguns chaveiros; e, no fundo, organizados por data, cadernos onde ele fazia anotações sobre assuntos variados.
– Olha! Eu nem lembrava mais que tinha esses cadernos de ideias! Coisa de mentes inteligentes e criativas... ahahaha!
Adão abre o primeiro caderno e começa a ler com os olhos brilhando e rindo como uma criança. De repente, a alegria torna-se espanto.
– Eu não acredito!
Ele levanta com o caderno na mão e vai até a janela. E fica por uns minutos olhando como se procurasse alguém.
– Será que justo hoje a ave bizarra não vai aparecer?
Adão volta a sentar na cama e começa a ler o texto que acompanha o desenho.
– Esta é a ave que vai me ensinar a voar. Isso mesmo... cabeça de pelicano e corpo de faisão! E dos bem coloridos. Usei lápis de todas as cores, não sobrou um só no meu estojo. Agora, vou fazer pensamento positivo para ela realizar meu maior sonho! A mamãe sempre diz que basta acreditar. Tudo bem que ela não sabe que eu quero sair por aí voando, mas não importa o que a gente deseja... se for com amor, a gente consegue... a professora disse isso outro dia. Então é isso... agora preciso dormir, porque amanhã tem prova de matemática... e lógica não é o meu forte.
O desenho de um sol sorrindo encerra a anotação do dia.
– Eu tô besta! Mas como é que quando eu vi a tal ave no quintal, não lembrei da que criei quando tinha oito anos? Espera aí... eu criei essa ave, portanto, ela vive na minha imaginação e só... como aparece no meu quintal depois de tantos anos, como se fosse real?
Adão volta para a janela a tempo de ouvir um bater de asas familiar.
– Estava aqui! Eu sabia! Por que não vem falar comigo agora?
Ele olha pela janela e vê Amália no terraço.
– Ah! Não se aproximou porque só quer aparecer pra mim... tô começando a achar essa história muito mais bizarra que a própria ave! Deixa eu ler mais algumas anotações.
Folheando o caderno, logo encontra novos textos interessantes.
– Hoje, mostrei meu desenho para a professora e ela riu, disse que essa ave não existe. Não entendo, uma hora ela me dá a maior força, diz que basta desejar que tudo acontece, e agora fica zombando de mim. Por isso, não gosto de falar com ninguém sobre meus sonhos.
O texto termina com um novo desenho da ave, desta vez, cabisbaixa. Adão respira fundo.
– Como posso ter esquecido desse desenho? E mais do que isso, como posso ter esquecido do meu sonho de voar?
Adão pega um caderno cuja capa está remendada com fita adesiva.
– Nossa! Será que alguém tentou rasgar ou me tirar o caderno, por isso está rasgado?
Ele vira as páginas devagar e do nada para com os olhos marejados.
– Hoje, meus amigos na escola tentaram tirar da minha mão meu caderno de anotações. Não deixei, mas estou triste, rasgou a capa. A mamãe disse que vai consertar pra mim. Eu não sei porque levei pra escola. Ele é só meu, é onde coloco tudo que eu mais quero... só eu e minha ave de estimação sabem o que escrevo aqui.
Adão tem o rosto lavado de lágrimas. Levanta mais uma vez e vai até a janela.
– Era minha companheira... minha parceira de sonhos... como pude tratá-la tão mal agora?
No quintal, a ave aparece perto da jabuticabeira e acena para ele com uma das asas. Emocionada, ela parece ter lágrimas nos olhos. Ele fica ali, por alguns minutos, sem saber o que fazer, agarrado ao caderno, tentando entender o que realmente está acontecendo.
– ADÃO!
Ele se assusta com o grito, recolhe os cadernos espalhados na cama e responde, disfarçando a emoção que suas lembranças lhe trouxeram. Amália entra no quarto e percebe alguma coisa no ar. Como está empolgada com seus novelos, prefere nem perguntar.
– Que susto, amor!
– E aí? Podemos trocar as caixas? A que comprei é esta aqui. É linda, mas um pouco menor que a sua, o importante é que é bem forte pra guardar suas coisas!
– Não tenho tantas coisas assim. Toma, pode pegar a minha. Mas vou ficar aqui arrumando minhas coisas, tudo bem?
– Tudo bem! Obrigada, amor!
Amália pega a caixa e corre para a sala toda animada. Ele começa a guardar na nova caixa brinquedos e lembranças da escola, mas deixa os cadernos de anotações em cima da cama.
– Preciso ler com mais calma... acho que vou fazer isso amanhã logo cedo.
Ele guarda os cadernos e coloca a caixa em cima do guarda-roupa.
– Amanhã, você tem aula de ioga?
– Tenho, amor! Mas volto só depois do almoço. Lembra que vai ter uma festa de comemoração dos 10 anos de fundação da escola?
– É mesmo. Vou aproveitar pra cortar a grama e dar uma lavada no terraço, o que você acha?
– Acho ótimo! Você tem certeza que não quer ir à festa comigo?
– Imagina! É sua turma... e você sabe que não tenho paciência pra festas.
– Ahahaha... quem não te conhece que te compre, já dizia minha avó!
– Tá bom, gosto de festa, mas quando conheço pelo menos duas pessoas...
– Já discutimos sobre isso, sem problemas!
– E não se preocupe que vou deixar alguma coisa pronta pra eu almoçar.
– Prendado!
– Ahahaha... vamos assistir a um filme?
– Agora não, amor! Estou organizando minha caixa nova!
– Gostou da caixa, hein? É linda mesmo, mas agora é sua! Então, vou assistir um jogo de basquete! Atrapalho?
– Claro que não!
Continua...
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