Quando Cleonice e Alcebíades tinham acostumado a sair de casa com três calças, cachecol, luvas, gorro, botas e um sorriso congelado no rosto, eis que chegam as festas de final de ano e eles precisam voltar aos trópicos.
– Eu só queria que família e amigos mudassem pra cá. Facilitaria tanto nossa vida, mas ninguém se dignou!
– Ah! Alcebíades, você acha que as pessoas todas vão mudar a vida delas por nossa causa?
– Claro que não... só nossa família e os amigos mais queridos.
– Simples! Agora, deixa de reclamar e venha comigo, precisamos arrumar nossas malas.
– Arrumar as malas? Você não ouviu a Clodomira dizendo que está quase 40 graus? Nem temos roupa pra isso...
– A Clodomira disse sobre a sensação térmica... dentro de casa deve estar uns 35!
– Ah! Que alívio!
– Ahahaha... não seja irônico. Então, vamos economizar tempo e paciência... não vamos levar malas, só minha bolsa e uma mochila com documentos e remédios.
– Mas e se acontece alguma coisa e a gente tem que fazer uma conexão? Você já viajou tantas vezes e ainda não aprendeu que precisa levar uma muda de roupa na bagagem de mão pra garantir nossa dignidade caso o avião tenha algum problema?
– Calma... eu sei... por isso falei da mochila. Não tomamos tantos remédios assim pra encher uma mochila grande... pensei em colocar uma nécessaire com os remédios e uma muda de roupa pra cada um... não está bom?
– Só uma dúvida, Cleonice! Qual muda de roupa você está pensando em colocar na mochila, se estamos num freezer indo para o forno?
– Não seja exagerado... vou colocar umas camisetas de manga curta e uma bermuda que você deixou de usar há alguns anos.
– Querida, como uma bermuda que não uso há anos pode garantir minha dignidade?
– Ahahaha... mas você tá impossível, hein?
– Será que eu entro nessa bermuda?
– Você não engordou, nem emagreceu, Alcebíades, é claro que você entra na bermuda! E não se preocupe, quando a gente chegar lá, compramos algumas peças de verão.
– Sua calma pra voltar à chapa quente me assusta... não sei como consegue manter a tranquilidade quando estamos prestes a torrar os miolos!
Cleonice vai para o quarto rindo, enquanto o marido afunda na poltrona, pensando nos próximos dias no país tropical.
Na hora do chá, os dois se esbaldam com pães, torradinhas com geleia, tortas doces e salgadas.
– Essa mesa está incrível, querida. Acepipes de todo tipo e esse chá... que benção!
– Acepipes! Adoro quando você fala essas palavras...
– Quer que eu fale no seu ouvido antes de dormir?
– Ahahaha... vai ser um prazer!
– E tá rindo por que, então?
– Fiquei imaginando você sussurrando acepipe no meu ouvido... será que funciona?
– Deixa de ser previsível, Cleonice! As palavras são muito poderosas e, dependendo da situação, podem abrir as portas do prazer!
– O que será que tinha nesse chá, hein? Trocamos de marca... será que é isso?
– Ahahaha... como você sabe ser desagradável quando quer, Cleonice!
– Ahahaha... você ficou tão animado de uma hora pra outra que achei que fosse alguma
substância proibida contida nesse chá... marca nova... sabe como é.
– Eu sempre estou animado, você é que gosta de jogar água fria...
– Ahahaha... tá bom... tome seu chá... precisamos nos apressar nos preparativos... a viagem é daqui dois dias!
– Tenho 48 horas de alegria, então?
– Não seja rabugento!
No dia seguinte, Cleonice aparece meio desanimada na sala. Alcebíades para de ler o jornal e fica por alguns minutos olhando para a esposa.
– O que foi?
– Ah! Você tem razão... não sei se quero voltar para o forno?
– Ahahaha... concordou comigo? O mundo está em perigo!
– Bobo! Mas você tem razão, será que conseguimos voltar a ficar de pernas de fora em público?
– Os dedos dos meus pés estão apavorados com a possibilidade de terem que se apresentar ao ar
livre...
– Aí vejo vantagem... pelo menos, você vai ter que cortar as unhas do dedão! Ultimamente, parece que durmo com uma águia!
– Ahahaha... era pra eu ficar bravo, mas não consegui... só rindo mesmo!
– Quer que eu mostre minha canela arranhada?
– Não, deixe pra mostrar a canela quando aterrissarmos na boca do vulcão!
– Ahahaha... melhor mesmo.
– Só me diz uma coisa... você viu a temperatura que temos hoje?
– Vi... 10 negativos!
– Agora, olha quanto tá fazendo no hemisfério sul...
– Eu vi... 40 graus positivos!
– Admiro sua calma...
– Fim de ano... tempo de festa... anime-se!
– Ahahaha... Eu queria que você visse a sua cara de arrasada tentando me animar.
– Eu tava pensando...
– Aí está o erro, querida! Não pense... porque se a gente pensar, desistimos antes de marcar a viagem!
– Tenho que concordar com você... mas lembrei da alegria das festas!
– Prefiro não pensar...
– Ahahaha... por quê?
– E você ainda pergunta, Cleonice? Depois que a prima inventou que todo mundo tem que cantar pelo menos uma música naquele bendito karaokê, as festas viraram um tormento!
– É mesmo... eu tinha esquecido do momento gritaria desafinada promovido pela prima Anabel!
– Isso se chama amnésia seletiva... preciso treinar mais...
– Ahahaha... não brinca com essas coisas, Alcebíades! O que eu quis dizer é que evito lembrar do que me constrange.
– Bela técnica, mas se eu usar, vou ficar sem memórias dessas festas...
– Você está muito rabugento, hoje! Amanhã, é nossa viagem, procure melhorar o humor!
– Do jeito que você fala, parece até que meu mau-humor é tão poderoso que é capaz de derrubar o avião!
– Para de falar essas coisas!
– Desculpe... lembrei que você tem medo de avião! E como consegue ficar tão calma e animada arrumando as malas?
– Autocontrole! Aprenda!
Chega o dia do embarque. Depois de responder a inúmeras mensagens de amigos e parentes, Cleonice guarda o celular na bolsa e se ajeita na poltrona do meio. Na janela, Alcebíades olha para o horizonte como se estivesse em sofrimento.
– O que foi? Que cara é essa? Quem vê, pensa que está indo pra forca...
– Forca não, forno!
– Eu já disse que é melhor a gente abstrair essa mudança brusca de temperatura. Isso só faz a gente ficar ainda mais ansioso...
– Só se for ansioso pela volta pra casa!
– Ahahaha... você bateu o recorde essa semana, hein? Três dias seguidos de mau humor!
– Tá bom! Vou tentar ver algo de bom... sorvete!
– Isso, querido! Adoro tomar sorvete!
– Mas acabo de me lembrar que debaixo de um sol de 40 graus não tem graça... derrete antes de chegar à boca.
Cleonice faz uma careta para o marido.
– E a sua cervejinha no quiosque?
– Aí você me deixa feliz!
– Tá vendo como tem seu lado bom?
– É, mas lembra da vez em que ficamos sentados no quiosque tomando cerveja e queimei os pés?
Tive até febre!
– Queimou os pés e teve febre, porque é teimoso... eu passei protetor solar nos meus a cada meia hora... você não passou nem quis que eu passasse porque não gosta da meleca... conclusão...
– ... três dias sem conseguir dormir, mancando e com uma marca que saiu uma década depois...
– Ahahaha... mal-agradecido. Com meu creme pós-sol consegui curar o seu estrago em dois dias!
– É verdade, mas não quero correr o risco...
– ... de gritar mais do que uma gata no cio, cada vez que eu encostava minha canela nas queimaduras durante a madrugada?
– Você sempre engraçadinha...
– Obrigada, amor!
– Agora, voltando às maravilhas do mundo em ebulição... o que mais podemos pensar que não seja sorvete derretido lambuzando nossa barriga e queimaduras no quiosque?
– Ah! Tem o mar... lindo... as ondas quebrando na praia...
– Lindo, concordo! Mas nem diga quebrando que lembro de sua tia mergulhando na arrebentação e literalmente arrebentando a prancha daquele menininho... eu nunca ouvi um choro tão alto como aquele... o moleque podia se candidatar a sirene de ambulância!
– Ahahaha... não seja insensível... era uma criança... tão pequenininho.
– Ele devia agradecer que sua tia não arrebentou com ele mesmo!
– Ahahaha... do jeito que você fala parece que minha tia é assim pesada... muito pelo contrário... e a prancha era daquelas de isopor!
– Pior do que isso, só aquele dia que resolvi jogar bola com seus sobrinhos na água...
– Ah... aquelas bolas grandes e coloridas! Acho tão divertidas!
– Mas você lembra que eu já estava há pelo menos uma hora jogando pra lá e pra cá, quando resolvi diversificar o saque e mandei a bendita bola pro alto-mar?
– Ahahaha... O pai do dono da bola faltou te encher de porrada...
– O cara não sabe beber... naquele sol, tava cozido e cheio de cerveja e sei lá mais o que na cabeça e veio querer me aloprar... derrubei o babaca na água mesmo!
– Pois é, mas o salva-vidas pensou que você tava querendo afogar o esquentadinho. E pra explicar que foi um mal-entendido?
– Sorte sua que ficou na praia... os caras nos levaram até o posto policial e eu tive que explicar, porque o pai do moleque estava com a cara cheia e não aguentava nem ficar em pé, além de ter tomado uns bons goles de água quando caiu...
– Como é que acabou esse episódio mesmo?
– Episódio é ótimo! É melhor parar de ver séries...
– Nem vem...
– Ahahaha... tô brincando... depois de resolver no posto policial ainda tive que comprar uma bola nova pro moleque e colocar o pai dele na ducha pra curar a ressaca! E você ainda diz que sou antissocial!
Cleonice dá um beijo em Alcebíades.
– Meu antissocial preferido...
O avião levanta voo e os dois adormecem assistindo ao mesmo filme. Quando desembarcam nos trópicos, uma intensa programação os aguarda.
– Ah! Que delícia! Sinto como se fosse um frango rodando naquelas máquinas...
– Uau... até fiquei com água na boca agora...
– Quer ir direto pro hotel?
– Ahahaha... bobo! Pensei num frango mesmo... e com farofa!
– Insensível!
– Belo casal... um antissocial e uma insensível!
Neste instante, um grupo de pessoas começa a gritar o nome dos dois. Familiares e amigos agitando o saguão do aeroporto.
– Essa viagem promete!
Alcebíades olha pra Cleonice com cara de dúvida.
– Será?
Os dois se aproximam do grupo e recebem abraços, tapinhas nas costas e seguem para a casa de um dos parentes. Quase um mês depois, o casal embarca de volta pra casa. O voo é bastante tranquilo, eles estão bronzeados e trazem no rosto um misto de satisfação por mais uma visita ao forno e alívio por estarem de volta ao freezer!
Passadas as primeiras horas no aconchego do lar, eles se esbaldam à mesa do chá, em meio às recordações.
– E aí? O que achou do forno este ano?
– Ah! Você sabe que eu gosto de variar, Alcebíades!
– Ahahaha... sei, mas não fui eu que entrei no quarto no segundo dia de estadia na fornalha lamentando as assaduras!
– Não seja cruel! Esse maiô que eu comprei foi a maior cagada que eu fiz...
– Olha que se a gente pensar, vamos encontrar coisa pior!
– Ahahaha... tudo bem! A verdade é que eu nunca imaginei que minha virilha ia ficar vermelha como a cara da prima Eustáquia depois de dormir no Sol, sem passar protetor solar no rosto!
– Até eu que não sou dos mais cuidadosos, sei que passar protetor no rosto é imprescindível até em dias nublados, quanto mais quando o sol parece ter triplicado de tamanho! Eu realmente não sei onde uma pessoa está com a cabeça quando faz uma coisa dessas!
– Não dá pra entender mesmo! Só sei que ela passou aquela noite toda gemendo com a cara enfiada em uma toalha gelada, tentando amenizar o estrago. Agora, no meu caso, o mormaço foi o culpado! Fiquei sentada embaixo do guarda-sol, protegida, repassando o protetor solar a cada meia hora e pra quê? Para a costura de um maiô arrancar sangue da minha sensível virilha!
– Ahahaha... parece nome de filme pornográfico... a ninfomaníaca da sensível virilha!
– Ahahaha... não quero rir, mas você é dose... ninfomaníaca!
– E digo mais, você não pode colocar a culpa totalmente na costura vagabunda do seu maiô... eu te avisei pra não sentar naquela esteira de palha, porque ia te machucar... você nem me ouviu e depois eu que aguentei...
– Aguentou? Como é que você fala isso na minha cara?
– Não adianta ralhar! Eu cuidei de você, fiquei passando pomadinha de bebê na sua excelentíssima virilha e a noite ficou só nisso mesmo... paguei os pecados!
– Você queria que eu ficasse sensualizando com a virilha assada? Sou sexy, mas existem situações que sem chance.
– Ahahaha... concordo... vamos mudar de assunto!
– Claro! E o que você me diz daquela dancinha constrangedora que você protagonizou com seu tio?
– Que dancinha? E que tio é esse?
– Ahahaha... esqueceu? Vou refrescar sua memória, querido! Fim de noite, temperatura em clima de chapa quente, você e seu tio Bernardo resolvem cantar no famigerado karaokê da prima Anabel!
– Espera aí, conta direito essa história! Quem resolveu cantar e me arrastou pra palhaçada foi meu tio, que já estava trançando as pernas...
– Mas como você é cara de pau... e você tava o quê? Se me disser agora que não estava com a cara cheia de cerveja, vou começar a achar que você realmente gosta de dançar daquele jeito e disfarçou que estava alto pra ninguém saber de suas habilidades corporais.
– Isso aqui tá parecendo telefone sem fio... aquela brincadeira de criança...
– Não precisa me explicar o que é telefone sem fio... mas chega de enrolar... eu só queria que me dissesse como um cara tão sem jeito pra dançar como você conseguiu fazer aquelas acrobacias carregando o tio como se ele fosse a primeira bailarina do Bolshoi?
– Ahahaha... a gente só sacolejou um pouco, a plateia que estava mais bêbeda que nós dois juntos e aplaudiu nossa singela apresentação!
– Enquanto eu assistia, só lembrava de você e seu mau-humor dias antes da gente embarcar para o forno!
– Ah! Você sabe como eu sou, prefiro ficar na minha. Mas já que estava longe de casa, sem minha rotina, em férias... por que não aproveitar e extrapolar um pouco?
– Vou cobrar essa animação mais tarde, hein?
– Ahahaha... nem precisa cobrar, minha sensível virilha!
– Para com isso! Você vai acabar me chamando assim perto dos outros... se fizer isso, encho sua cara de porrada!
– Pelo jeito é só a virilha que é sensível... ahahaha. Já que você está tão animada narrando minha estripulia nos trópicos, gostaria que tivesse essa mesma desenvoltura pra relembrar o dia na sorveteria...
– Ah! Quando tivemos que levar a criança aí tomar sorvete na taça, com guardanapo à vontade, e
água mineral no copo de vidro pra ele não chorar na praia quando o picolé derretia?
– Não mude o foco da conversa! Quer saber? Fui mesmo numa sorveteria, cansei de pagar sorvete e ver metade dele derreter barriga abaixo. Tá reclamando por que, querida? Você foi junto e ainda pediu calda extra!
– Ahahaha... claro... se é pra sair da praia e enfrentar fila, quero tudo o que tenho direito...
– O seu direito era sorvete com calda, calda extra foi por conta de sua gula!
– Não seja mão de vaca, Alcebíades!
– Ahahaha... então, voltemos ao que interessa. Que cantada foi aquela, hein? Se eu fosse tudo que você diz, eu tinha quebrado a cara do babaca, deixado a sorveteria em pedaços e ainda tinha derramado todos os potes de cobertura extra no chão.
– Violento, desumano!
– Ahahaha... eu disse que se eu fosse como você diz, mas como sou um cara civilizado...
– Civilizado?
– Civilizado sim... eu queria ver se uma mulher chegasse perto de mim naquela saliência toda... você ia gostar?
– Claro que não!
– Ah! Que ótimo! Mas parece que sendo você o alvo da cantada, tudo bem!
– Eu não disse isso, não ponha palavras na minha boca... ahahaha...
– E ainda fica rindo na minha cara.
– Ahahaha... eu achei tudo tão ridículo que nem me importei. Só depois quando voltamos pra praia tive vontade de xingar o otário!
– Mas na hora ficou brava comigo... fui defender você e o que eu ganhei?
– Não fala assim... e você precisava...
– Claro que precisava...
– Chega de recordações do alto forno. Abre a janela! Quero sentir o vento frio invadindo o ambiente.
– Está doida? Lá fora está nevando, oito graus abaixo de zero!
– Ué? Mas você reclamou tanto que tava escaldando lá...
– Mas também não quero congelar aqui!
– Então vamos pra sala? A gente assiste a um filme e depois...
Nesse momento, Cleonice dá uma série de espirros de assustar criancinha e sorri satisfeita.
– Pensei que não ia parar mais! E depois eu é que sou exagerado! Mas o importante é que, seja na geladeira ou na churrasqueira, mais uma vez sobrevivemos às temperaturas extremas... somos heróis!
– Eu diria que estamos mais pra anti-heróis...
– Ah! O que importa é que congelando ou escaldando, temos o nosso charme!
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