Toca a campainha. Dênis se arrasta para abrir a porta, cumprimenta os amigos Newton e Aurélio com um sorriso sem graça e se joga no sofá. Os dois ficam assustados com o cenário de guerra. Na mesinha de centro, o notebook briga por espaço com copos, canecas e pratos, dezenas de livros e folhas de papel cheias de anotações que mais parecem hieróglifos. No chão, bolinhas de papel, uma caixa contendo um fóssil, que, provavelmente, um dia foi um pedaço da pizza, taças de vinho, uma garrafa de refrigerante vazia, além de cascas de pão espalhadas por toda a sala.
– Senta aí, gente!
– Dênis, como você ainda consegue rir numa situação como essa?
– Que situação?
– A sua, pombas!
– Eu estou ótimo... finalmente, consegui entregar os relatórios do trabalho e adiantei as pesquisas do meu doutorado. Tenho motivos para sorrir e comemorar!
– O Newton já perguntou, mas como é que você consegue resolver alguma coisa nessa zona?
– Que zona, Aurélio? Não sejam dramáticos! Eu pensei que meus melhores amigos iam adorar comemorar comigo, mas pelo jeito me enganei.
– Claro que queremos comemorar, Dênis, mas você é dose!
– Não estou entendendo. Estão incomodados com a bagunça? Vocês já me conhecem, sabem que quando tenho coisas do trabalho e pesquisa do doutorado, esqueço o resto. Qual a surpresa?
– Quer que a gente faça uma análise mais detalhada?
– Vamos lá, analistas da vida alheia! Enumerem meus pecados!
– Você que pediu... agora aguenta! Começa, Aurélio!
– Muito bem, Newton! Mas que fique claro que é uma opinião compartilhada por nós dois!
– Claro!
– Escuta, antes de continuarem... vocês devem estar com tempo livre pra ficar tomando conta da minha vida, hein?
– Se quiser, podemos sair agora!
– Para de frescura, Newton! Fala logo, Aurélio!
– Então vou enumerar: suas contas absurdamente sempre atrasadas; a falta de faxina na casa há pelo menos seis meses; sua mania de comprar tênis, botas e tudo que é tipo de calçado, esquecendo que precisa de roupas e detalhe: só tem duas calças jeans fazendo bodas de prata; a escassez de comida na geladeira; o fato de comprar mais bananas do que consegue comer, não aguento vê-las amolecendo na fruteira; e essa ideia sem noção de publicar palavrão como comentário de qualquer notícia ou post nas redes sociais, cadê o poder de argumentação?
– Só isso? Querem que eu comente uma a uma?
– À vontade!
– Vamos lá. Em primeiro lugar, não tenho contas atrasadas, mas acumuladas... deixo todas pra pagar no mesmo dia pra facilitar.
– Facilitar o quê? Se não tem paciência, porque não coloca no débito automático?
– Débito automático é coisa pra rico... dependo do salário, sei lá se vou ter emprego amanhã...
– Que otimismo... que positividade!
– Sem ironias... simplesmente, sou realista! Segundo, a faxina da casa sou em quem faz. Seis meses?
Talvez mais, hein? Deixa eu ver... tive problema na coluna – dois meses fazendo fisioterapia e nada de esforço físico. Quando fiquei bem, viajei a trabalho duas semanas seguidas, uma para cada lado do país... sem chance. E nos últimos dois meses, marcava na agenda o dia que ia fazer a faxina e quando o dito cujo chegada, cadê a disposição? E assim foram realmente seis meses, mas ontem eu varri o chão e tirei a poeira dos armários... tive de jogar a flanela fora, mas tudo bem!
– Tudo bem? Não é mais fácil contratar alguém ou uma empresa pra fazer a faxina?
– É? Não acho... depois a pessoa vai ficar querendo limpar minhas estantes e armários, não gosto de ninguém estranho bolinando nas minhas coisas...
– Ahahaha... que merda... tive que rir.
– Ahahaha... relaxa! Terceiro. Que mania de comprar tênis e botas? É gosto! Prefiro gastar meu dinheiro com o que colocar nós pés, não tenho culpa se as pessoas não ligam pra quem leva as gente pra lá e pra cá. Minhas calças jeans? Estão ótimas... só troco quando rasgam na bunda!
– Eu nem vou discutir...
– Já estamos discutindo!
– Ah! Continua, vai!
– Agora, vou juntar duas ponderações numa só: a escassez de comida na geladeira e as bananas
amolecendo na fruteira. Tudo incomoda? O negócio é o seguinte: não compro muita coisa mesmo pra encher a geladeira, porque as coisas estragam... eu trabalho pra cacete, na maioria dos dias chego em casa só pra dormir. E quanto às bananas, reclame com elas... eu compro pra semana toda, é bom pra quem faz exercícios físicos. Converso todos os dias com elas, mas são rebeldes, amadurecem todas ao mesmo tempo... acho que sou irresistível mesmo... ahahaha... elas querem que as coma logo.
– Você devia pensar mais em fazer refeições saudáveis em casa, em vez de comer qualquer porcaria em lanchonetes. E deveria comprar bananas duas vezes por semana, assim não estragam tanto.
– Sinceramente, não tenho vontade de ir ao mercado uma vez por semana, quanto mais duas. E fazer comida só pra mim? Difícil, ainda mais depois de um dia inteiro de trabalho estressante, sem contar com o trânsito.
– Volte a usar sua bicicleta! Além de fugir do congestionamento, chega em casa mais cedo, sem estresse e cozinha alguma coisa pra comer!
– Ótimo! Faça isso você! Eu prefiro meu caos! Ah! E qual o problema em comentar com um simples e contundente palavrão esse bando de notícia sofrível e posts sem nexo? Ah! Meu poder de argumentação gasto nas reuniões de trabalho. Quando chego em casa e entro nesses raios de redes sociais é pra descontrair.
– Com palavrão?
– Pra mim, é a melhor forma de exprimir o que sinto com relação a alguns assuntos impossíveis de não arrumar encrenca caso faça um textão, prefiro um palavrão. Prefiro ser o porra louca, do que o especialista de internet que tudo sabe!
– Putaquepariu! Sou obrigado a concordar com você, Dênis!
– Tá vendo, Newton? Eu sempre consigo te convencer que a vida é muito mais do que organização...
– Tudo bem, até vejo alguma sanidade nisso tudo, mas o que você pensa que vai acontecer se você continuar com essa mania de viver nesse caos?
– Aurélio... o que você considera um caos, pra mim é aconchego do lar... passei três dias concentrado nos relatórios do trabalho e pra me dedicar um pouco mais ao doutorado... não fale como se estivesse diante de um largado da vida. Simplesmente, não ligo pra essas coisas... admiro quem é, mas não sou um dono de casa... ahahaha...
– Nem eu, também não tenho tempo pra porra nenhuma. Mas contratei uma empresa que faz a limpeza pra mim, faço compras de frutas e verduras pela internet, entregam em casa, tudo pronto para o consumo. Sou assalariado, mas tenho as principais contas no débito automático!
– E eu pago as contas por aplicativo no celular a qualquer hora, mesmo se estiver no banheiro...
– Por favor, Aurélio, nos poupe dos detalhes sórdidos! O que vocês precisam entender é que comigo é assim! Eu não consigo administrar tudo isso, prefiro gastar energia com meus estudos... quero fazer logo esse raio de doutorado, só assim, vou poder tentar me aventurar pelo mundo!
– Admiro você, Dênis! Tô começando a achar que estamos atrapalhando quando pensamos em ajudar!
– Não fala isso, Newton!
– Pois é, acho melhor deixarmos o intelectual produzindo...
– Não, Aurélio! Vocês são meus melhores amigos, os únicos que me entendem, quer dizer, agora tô achando que não é bem assim...
– Claro que somos seus melhores amigos!
– E você é nosso melhor amigo!
– Então, deixa eu perguntar uma coisa: que discurso de tia velha é esse, hein? Chegaram aqui cheios de críticas... como se não conhecessem meu caos particular!
– Ah! A gente veio porque...
– Newton!
– O que foi, Aurélio? Quem mandou vocês aqui?
– Ah! Foi sua mãe, Dênis. Sabe como é, a gente se conhece desde criança, sua mãe é uma segunda mãe pra nós.
– E mãe é mãe! Não podíamos negar um pedido dela!
– Minha mãe me conhece mais do que vocês...
– Certamente, mas você percebeu que faz mais ou menos duas semanas que vocês não se falam?
– Duas semanas? Caramba! Mas a gente se fala todos os dias... quer dizer... pensando bem...
– Ela queria te ver, Dênis!
– Pois é, olho no olho! Ela não é dessa geração de porras que só conversam por mensagem...
– Nem nós!
– Ahahaha... é verdade! Mas é que outro dia nos falamos por vídeo e ela quase teve um ataque, disse que não me criou num chiqueiro e que viria me salvar!
– É sua mãe, só queria te ajudar, meu!
– Tudo bem, mas eu funciono assim, só consigo manter a sanidade...
– ... em meio ao caos!
– Boa, Aurélio! Parece nome de filme catástrofe...
– Ahahaha... então, vamos pra cozinha! Não me olhem com essas caras, a cozinha está intacta, como vocês podem ver, não entro lá nem pra levar os copos e canecas sujas...
– Tá bom, aceitamos um café, se tiver pelo menos um copo limpo nessa casa.
– Ah! Se não tiver, vocês podem tomar na jarra da cafeteira mesmo... ahahaha...
– Você não tem vergonha dessa porquice toda?
– Ahahaha... sinceramente? Não!
– Ótimo, mas, Newton, não seria melhor voltarmos ao assunto?
– Vamos pra cozinha, seja lá o que vocês têm pra contar, pelo menos lá vocês podem sentar e ficar mais confortáveis pra continuarem com o sermão da montanha!
Depois de meia hora tomando café e tentando relaxar, Aurélio olha pra Newton com cara de preocupação e Dênis se irrita.
– Sério mesmo? Vocês vão continuar me olhando com essas caras de... vamos, um dos dois vai me dizer agora porque chegaram tão afobados me criticando e agora ficam olhando pra tudo que é lado, procurando sei lá o quê... falem logo!
– Fala, Aurélio!
– Sempre eu... mas tá bom, eu falo! Dênis... por acaso, sua mãe tem a chave da sua casa?
– Vocês sabem que ela tem, sempre que eu viajo por muitos dias, ela vem colocar água nas plantas... e daí?
– Tá explicado, Newton!
– Qual o problema da minha mãe ter a chave?
– Não tem problema ela ter a chave...
– O único problema é que ela pode estar aqui... e você nem se deu conta!
– O que? Como assim?
– Simples... ela fez duas ligações pedindo socorro, uma pra mim e uma pro Aurélio...
– Pedindo socorro? E por que não me falaram antes? O que aconteceu com a minha mãe, seus porra?
– Não adianta ficar nervosinho, quem fez a merda aqui foi você!
– Eu fiz merda? Eu estava trabalhando e estudando.
– Insensível! Não precisa pisar nos outros pra fazer o que quer!
– Como pisando? Eu não falo com ninguém há semanas...
– A gente sabe...
– Cadê minha mãe? O que ela falou pra vocês exatamente?
– Ela só teve tempo de pedir que viéssemos até aqui resgatá-la!
– Resgatá-la? Mas desde quando minha mãe está aqui? Onde?
– Achei! Se eu não estivesse neste instante vendo isso ao vivo e a cores, não acreditaria!
– Aurélio do céu! Agora vi!
– O que vocês viram, seus malucos?
– Me parece a perna da sua mãe ali, embaixo dos escombros de sacos de papel com cheiro de fast-food, pastas que me parecem do seu trabalho e almofadas manchadas de ketchup e mostarda e de... eu não acredito!
– Pelo amor dos céus, Dênis... aquelas manchas ali são do que eu estou pensando?
– Deixa de ser idiota, deve ser de maionese ou creme de leite, sei lá! Mas espera aí, vocês estão querendo dizer que minha mãe está no meio dessa bagunça? É brincadeira, né? Como ela veio parar aqui na minha sala?
– A chave... lembra? Você mesmo disse que ela ia vir te salvar.
– Parece que o escotismo não a ajudou...
– Mãe!?
Dênis arrasta a mesinha de centro, espalha os sacos de papel e algumas almofadas e eis que encontra sua mãe com cara de quem está sufocada há pelos menos dois dias sob os escombros.
– Mãe! Quando a senhora veio aqui?
– No sábado que falamos por telefone e fiquei de vir te salvar.
– Como eu não vi a senhora?
– Entrei como sempre sem querer atrapalhar... você estava cochilando com a cara enfiada numa pilha de relatórios...
– Por que não me acordou?
– Você dormia profundamente...
– E porque a senhora ficou aí escondida?
– Não estou escondida, menino! Me ajude a levantar daqui...
– Como a senhora foi parar aí embaixo dessa montanha de coisas?
– Eu me pergunto, como você pode produzir uma montanha dessas?
– Mãe... eu quero saber como a senhora foi parar aí!
– Simples, como eu disse, entrei devagar... vi você dormindo... e resolvi começar a recolher as coisas do chão. Mas o destino quis que eu escorregasse numa bisnaga de ketchup e me estabacasse de cara nessa montanha de entulhos... senti como se estivesse naqueles seriados antigos em que o protagonista caía na areia movediça e ia afundando, afundando...
– Não acredito! Minha mãe se afundou no meu caos?
– E estou lúcida... mas desisto, filho! Por favor, meninos, me levem pra casa. Ao contrário de você, Dênis, minhas plantas e meu cachorro devem estar desesperados sem notícias minhas!
– Não diga isso, mãe! Claro que eu me preocupo com você!
– Eu percebi... como é que você não sentiu que tinha mais alguém nessa sala? E respirando... com dificuldade, mas respirando!
– Mãe, a senhora ficou desmaiada por dois dias?
– Não, um dia e meio... quando consegui pegar meu celular do bolso e ligar pros meninos!
– Se a senhora conseguiu pegar o celular, porque não deu um grito pra eu te ouvir?
– Que vergonha! Eu gritei a noite inteira, mas essas almofadas emporcalhadas devem ter me sufocado!
– Será que a senhora quebrou alguma coisa?
– Se alguém se dignar a me levantar daqui quem sabe eu possa responder essa sua pergunta de filho preocupado!
– Quanta ironia, mãe! Eu estava trabalhando, estudando... concentrado! Podia ser pior...
– Para sua mãe, sem dúvida! Agradeço por não presenciar nenhuma sessão de sadomasoquismo!
– Mãe! Por acaso, já fiz alguma coisa dessas?
– Não sei e não quero nem saber! Só agradeço!
De repente, a campainha, o telefone fixo e o celular começam a tocar ao mesmo tempo e insistentemente. Dênis acorda com a mãe e os dois amigos Aurélio e Newton olhando com cara de reprovação.
– Que bom, mãe! Ainda bem que a senhora não estava sob os escombros!
– Que escombros, filho?
– Ah! Que bom que foi sonho!
– Dênis, estamos ligando e tocando essa campainha há horas. Que sono profundo foi esse?
– Quase chamamos a Defesa Civil!
– Ah! Acredito que dormi de exaustão. Finalmente, consegui entregar os relatórios do trabalho e adiantei as pesquisas do meu doutorado. Vamos comemorar?
– Só se for na minha casa, filho! Olha essa sala, eu nem quero comentar!
– Nem entra, mãe... tenho medo que a senhora escorregue numa bisnaga de ketchup e fique perdida aí no meio...
– Ahahaha... que loucura é essa, filho?
– Dênis, não me diga que você sonhou que sua mãe...
– Ahahaha... acho melhor a gente sair logo, já me vejo virar aquelas manchetes do tempo do Notícias Populares!
– Tudo bem, podem me criticar! Mas eu funciono assim, só consigo manter a sanidade...
– ... em meio ao caos!
– Boa, Aurélio! Parece nome de filme catástrofe...
– Vocês falavam isso no meu sonho...
– Então, vamos embora, não quero realizar seu sonho, filho!
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