Oto, segundo os amigos, é um cara muito gente boa, mas nasceu desprovido de paciência. Qualquer coisa pode tornar uma manhã de calmaria em um dia de fúria incontrolável.
Quando tinha cinco anos de idade, seus pais o levaram para aprender tae-kwon-do. Além de acharem importante fazer um esporte, seria muito bom para o menino aprender a equilibrar as emoções. A ideia veio depois que receberam um chamado da diretora. Ele havia quebrado duas carteiras e xingado de boçais todos na sala de aula, inclusive a professora. Importante dizer que, na época, ele nem sabia o que a palavra significava. Depois de Oto pedir desculpas e os pais pagarem os danos materiais, ele foi transferido para outra escola. E lá recomendaram que fizesse algum esporte pra ter mais autocontrole e disciplina.
Na juventude, optou por cursar duas faculdades em sequência, formou-se em TI e depois em Filosofia. Pois é, Oto tem interesse em diversas áreas do conhecimento, está sempre estudando e se estressando com o que considera falta de comprometimento das pessoas. Continuou tendo discussões arrebatadoras nas salas de aula, mas sem quebrar carteiras ou chamar os outros de boçal... só em pensamento.
Atualmente, trabalha em uma empresa de tecnologia como programador e, nas horas vagas, participa de um grupo de estudos filosóficos na faculdade. Mesmo formado há anos, continua participando da vida acadêmica. Nesses encontros semanais, tenta entender até onde pode chegar a falta de consciência do ser humano.
Assim é Oto, um cara pacato, mas que ainda guarda uma boa dose do menino explosivo que foi na infância e do jovem com tendências revolucionárias, que fez amigos nas duas faculdades por onde desfilou sua inteligência, risadas e seu pavio curto.
E, hoje, é um dia muito importante pra quem trabalha e estuda incansavelmente... começam suas férias! Ele sempre marca durante o recesso de aulas pra sair totalmente de circulação e recarregar as energias. No ano passado, conseguiu descansar todos os dias, viajou e até bateu o recorde de livros lidos em um mês. Resultado: voltou às atividades satisfeito e com o nível de estresse mais baixo da década.
Acordado, mas ainda deitado, ele observa os primeiros raios de sol entrando pelas frestas da janela. Levanta rápido, abre a cortina e olha para o céu... o dia promete um calor daqueles. A casa está vazia... só ele de férias, tudo parece conspirar para um dia incrível. Até o cachorro parece ter entrado em férias, dorme profundamente no tapete da sala, nem levantou quando ouviu seu dono abrindo a janela. A hora é de aproveitar a calma da manhã.
Antes de contar o que aconteceu nesse dia, é preciso dizer que Oto pensa em voltar ao consultório de seu terapeuta, coisa que não acontecia há pelo menos uns sete anos, quando recebeu alta. Começou a fazer terapia pra ajudar Laércio, irmão de um de seus amigos de infância, que precisava de um mínimo de pacientes para manter o consultório recém-inaugurado. Foi ficando e, incrivelmente, gostando da experiência.
Mas agora vamos voltar ao primeiro dia de férias de Oto. Depois do café da manhã, ele resolve começar a ler um dos livros que há meses suplicam por sua atenção, amontoados na mesa do escritório.
– Ah! Vocês ainda estão aqui! Que ótimo! Prometo que mais tarde vou acomodá-los na estante pra que me esperem com mais conforto!
Oto pega um livro, escolhe um marcador com frases de grandes filósofos e vai pra sala. Seu cachorro ainda dorme no tapete. Quando ele termina de ler o primeiro capítulo, o sol já invadiu a casa. Ele dá uma espreguiçada, daquelas que a alma quase sai do corpo, dá um suspiro de satisfação e, em questão de segundos, o sossego, a alegria e a paciência, há anos controlada, desaparecem como que por encanto. O barulho de uma britadeira chacoalha tudo e acaba com o brilho da manhã. Seu cachorro levanta latindo sem parar, os vizinhos batem portas, crianças param de jogar futebol na rua e gritam como sirenes descontroladas. Tentando ignorar a algazarra, Oto continua sentado na poltrona, enquanto seu cachorro fica rouco de tanto latir.
– É só uma britadeira! Vou superar a raiva que está crescendo dentro de mim. Hoje, sou um homem equilibrado... vou conseguir.
Depois de uns 15 minutos, o barulho para, seu cachorro volta a dormir no tapete. Ele respira fundo e continua sua leitura.
– Nem vou comentar!
A leitura seguiu solta até quase a metade do livro, quando mais uma vez... a britadeira ataca! Embora o barulho seja ensurdecedor, desta vez, para espanto de Oto, seu cachorro continuou deitado e latiu algumas vezes. Na rua, pelo som do apito do juiz, as crianças até deram uns gritos irritados, mas continuaram jogando futebol, os vizinhos bateram portas, mas também não se dignaram a sair e muito menos a gritar... e, nos próximos 15 minutos, só se ouviu a voz tonitruante da britadeira.
– Eu não acredito... esse negócio está me irritando tanto quanto da primeira vez, mas parece que só está afetando a mim. Vou me acalmar... lembre-se da terapia, Oto! Nada de pensar em estresse, esvazie a mente e tudo se acalmará. Ele faz inúmeras tentativas, mas só se acalma quando o barulhão é interrompido.
– Pronto! Agora, não temos mais do que reclamar. Vou ler mais um pouco! Não posso esquecer de bater o bolo que prometi.
Leitura encerrada, Oto vai para a cozinha, seguido pelo cachorro, que deita no tapete em frente à pia. Com o calor que está fazendo, é só o que consegue fazer.
– Ah! Aqui está a receita! Tem que bater claras em neve!
Ele pega os ingredientes, coloca sobre o balcão e separa os ovos. Quando liga a batedeira, parece que o eletrodoméstico tinha conexão direta com a britadeira, foi só ligar e o tormento recomeçou!
– Ah! Não!
Oto abre os braços de indignação, mas fica sem ação quando vê seu cachorro dar alguns latidos, de olhos fechados e, em poucos segundos, voltar a roncar.
– Mas o que há com as pessoas e os cachorros? Não estão mais incomodados com essa barulheira? Tudo bem que os animais são bem mais sábios que nós humanos e aproveitam melhor a vida, mas conseguir roncar com esse calor e esse barulho todo, só o meu cachorro mesmo!
Ele vai até a janela da sala e fica ainda mais surpreso. Desta vez, as crianças já não estão jogando futebol e os vizinhos parecem ter casas com revestimento acústico, nem um pio na rua... além, é claro, da doce britadeira.
– Acho que ligar o aspirador de pó pra um duelo com esse raio dessa britadeira pode ser uma boa ideia.
Oto corre até a área de serviço, pega o aparelho e liga na sala com a porta aberta para que o cara da britadeira veja que ele também tem poder. Neste instante, o cachorro levanta a cabeça e só falta revirar os olhos.
– Não vem com críticas, Anselmo! Se não tá se sentindo incomodado volte a dormir... fique na sua.
O cachorro aceita a sugestão e se joga no chão para aproveitar o piso geladinho.
– Esse folgado do Anselmo só dorme... deu aquelas latinas nervosas mais cedo só pra eu lembrar que é um ser canino.
Depois de perder a vontade de ficar segurando o aspirador de pó na porta de casa, Oto desliga o aparelho e volta à cozinha.
– Esqueci do bolo!
As claras cresceram tanto que transbordaram da tigela da batedeira, até o cachorro está respingado.
– Anselmo! Levanta daí... você vai ficar cheirando a ovo, vou ter que te dar outro banho!
A palavra banho parece ter ligado o cachorro no 220, ele levanta e corre para a área de serviço.
– Calma! Não vou te dar banho agora, vem aqui pra eu te limpar, foram só dois respingos...
Anselmo volta com o rabo entre as pernas e para na frente de Oto.
– Pronto... não precisa fazer essa cara de desespero. As claras subiram e desandaram... perdi o ingrediente! NÃO VOU FAZER MAIS O BOLO! Desculpe, Anselmo, eu sei, me excedi... ah... que bom... a britadeira se calou. Vamos pra sala... acho que vou ligar a televisão.
Oto e Anselmo andam quase arrastados... o calor está desértico. Ele olha pela janela e resmunga.
– Impossível, essas pessoas devem usar algum tipo de protetor de ouvido de última geração, se é que isso existe! Será que estão acostumados ou caíram desmaiados?
Anselmo olha para Oto enfastiado e deita no tapete.
– Eu já disse pra você parar de me criticar! Dorme aí.
Irritado, ele procura alguma coisa para assistir, mas está tão nervoso que fica dando voltas pelos vários canais sem encontrar nada que atraia sua atenção.
– Eu não sei o que acontece com as pessoas... e os cachorros, né, Anselmo? Como podem ficar tranquilas com essa britadeira atormentando a gente a cada meia hora?
Ele nem termina de falar e o barulho recomeça.
– Chega... vou resolver isso agora!
Anselmo levanta as orelhas, percebe o alto índice de tensão no ambiente e se esconde atrás do sofá. Oto abre a porta e sai batendo os pés. Toca a campainha da casa vizinha.
– Seu Moisés... o senhor ainda tem aquele machado?
– Tenho, mas tá bem guardado, minha mulher não gosta nem de ver, é muito afiado e pesado.
– É tudo o que eu preciso agora! Posso pegar? O senhor ainda guarda no porão?
– Ah... sim... guardo, mas pra quê tanta pressa? Você parece nervoso.
– Não se preocupe, não vou matar ninguém!
– Que ótimo... entre.
Quando vê o machado fixado na parede, ao lado de dezenas de ferramentas, Oto dá uma gargalhada.
– Obrigado, seu Moisés!
– Espero não me arrepender...
Decidido, ele atravessa a rua, em silêncio, empunhando o machado. Os operários da obra estranham aquele homem pulando os cavaletes e se entreolham sem saber o que fazer. Oto levanta o machado com as duas mãos, dá um grito e começa a atacar.
– Britadeira maldita!
Mesmo protestando, a reação imediata do operador é de soltar o equipamento, antes que o maluco corte suas mãos. A britadeira começa a rodopiar pela obra, quebrando tudo o que encontra pela frente, enquanto Oto continua tentando abatê-la com machadadas cada vez mais violentas.
A vizinhança estarrecida com o ataque de fúria, tenta segurar Oto na base da gritaria, já que ninguém tem coragem de se aproximar do tal machado. Carros de polícia chegam com as sirenes ligadas. Em meio a algazarra de operários, populares e o latido incessante de cachorros das redondezas, um policial usa a arma de choque em Oto, que desaba feito um saco de batatas, agarrado ao machado.
Uma hora depois, ele aparece transpirando e com a voz embargada no consultório de Laércio, seu terapeuta.
– Fiz uma grande besteira... mas necessária! Todo mundo queria fazer o que eu fiz, mas são um bando de covardes, inclusive o Anselmo... não sei onde eu estava com a cabeça quando escolhi aquele bibelô canino, sempre quis ter um cão de guarda e não um dorminhoco sem iniciativa.
– Eu já disse pra você não transferir suas frustrações para seu cachorro. Eu sabia que essa sua mania de fazer besteiras necessárias ainda ia te trazer de volta à terapia... e dependendo do que você me contar agora... sem alta prevista para as próximas décadas.
Neste instante, Anselmo lambe o rosto de Oto e ele acorda.
– Que bom que você acordou! Desculpe, mas resolvi buscar seu cachorro pra tentar acordá-lo... faz horas que você desabou quando pegou meu machado... ahahaha... que frase maliciosa... ahahaha...
– Como assim? Eu desmaiei?
– Ah! Eu entendo... o tamanho da minha ferramenta sempre assustou...
O cachorro lança um olhar crítico para o dono. Oto levanta irritado.
– O que é Anselmo? Tá me estranhando? Espera... não estou ouvindo mais aquele barulho ensurdecedor da...
– A obra já acabou faz tempo... quer dizer, faz pelo menos duas horas, até recapearam a rua. Finalmente, uma obra terminada em nosso bairro!
– O quê? Eu desmaiei aqui no seu porão há duas horas?
– Pois é, Oto! Eu tentei te acordar, mas vi que você estava bem, precisava só descansar pra desestressar... minha mulher chamou para o café da tarde, eu fui e, desculpe, mas esqueci de você aqui... comecei a assistir a um jogo de futebol americano na televisão e, surpreendentemente, adorei. Só lembrei do que tinha acontecido, quando Anselmo começou a latir sem parar... aí lembrei que o dono dele estava caído no meu porão, por causa de meu enorme machado... ahahaha. Desculpe, mas não posso perder a piada, faz tempo que meu querido não assusta ninguém... ahahaha...
Oto tenta disfarçar a vontade de mandar o vizinho se lascar, mas dá um sorriso sem graça e pega Anselmo no colo.
– Desculpe mesmo, seu Moisés! Mas, de qualquer forma, obrigado por me emprestar seu machado...
– Antes de ir, só me diz uma coisa
– Claro...
– Você esperava quebrar a britadeira com meu machado?
– Não... quer dizer...
– Você precisa tomar chá de camomila na veia pra se acalmar...
– Eu fiz alguma coisa grave?
– Não! Já disse, você deu uma gargalhada quando pousou os olhos em meu machado e depois desmaiou!
– Não entendo o que aconteceu comigo... tem certeza que eu não fui até a obra empunhando seu machado?
– A única coisa que você fez quando eu já estava na sala foi gritar...
– ... britadeira maldita?
– Exatamente!
– Desculpe e obrigado seu Moisés. Vamos Anselmo! Acho que preciso ligar para o Laércio... quem sabe, não está na hora de voltar à terapia?
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