João está radiante! Hoje, por um milagre, conseguiu lugar para sentar no ônibus. E na janela! Assim a vida fica mais fácil... ou, pelo menos, parece. Sua imaginação vai longe quando tem essa sorte. Ele adora observar seu mundo em movimento. Quer dizer, isso quando o congestionamento permite.
Como todos os dias, o ônibus está lotado. E como todos os dias, o trânsito está um caos: sinfonia de buzinas, motoristas estressados, motoqueiros costurando entre as faixas. E João pensa: “como seria ótimo estar numa moto. Eu sei que é perigoso, mas o vento no rosto faz valer a pena, sem contar o prazer de ultrapassar os carrões dos bacanas nas filas intermináveis... só assim pra gente ganhar deles”.
Mas como continua dentro de um busão, sem saber quando vai poder sentir esse vento no rosto, João resolve olhar com calma a paisagem da sua periferia. Da janela, ele vê passar a rotina sofrida de parte da cidade que só é lembrada pelos governantes quando ainda são candidatos. Ruas esburacadas, iluminação precária, praças malcuidadas, poucas unidades de saúde, áreas de lazer deterioradas ou inexistentes. “Se esses políticos soubessem quantas mentes brilhantes, criativas e generosas se perdem por aqui. Bairros afastados e esquecidos, mas onde encontramos amizade e respeito pelo diferente. Onde as crianças passam horas na rua, descem ladeiras em carrinhos de rolimã, jogam futebol, correm, dão risadas. Há sonho na periferia. Não é porque nossas carências estão expostas que não cultivamos as pequenas alegrias do cotidiano”.
Mais alguns quilômetros e o sorriso de João se esconde quando o ônibus passa ao lado de casas penduradas em encostas e em margens de córregos. Famílias inteiras desprotegidas, em constante perigo. O implacável esgoto a céu aberto escorrendo onde os pezinhos inocentes brincam. João lembra dos prédios suntuosos que vê quando chega ao trabalho, belos escritórios distribuídos ao longo de incontáveis andares, tão altos, mas tão seguros. Ah... como ele queria que um pouquinho dessa preocupação com a segurança das empresas fosse dado às pessoas do seu pedaço.
Ele não entende como ainda há tanta desigualdade em sua cidade, em seu país, no mundo. E a periferia olha constrangida e resignada para o lado abastado, muitos levam a vida aos trancos e barrancos como se não merecessem a mesma atenção que os bairros ditos nobres recebem. João sempre diz que aí é que está o problema: os poderosos adoram a nobreza e para mantê-la financiam essa pobreza toda. “Assim gira a roda das desigualdades”.
Já quem mora nessas bolhas de riqueza nem olha para a periferia, muitos nem sabem onde fica ou só lembram que existe quando estão a caminho do aeroporto internacional, geralmente, com os olhos grudados ao perfeito mundo virtual e sua visão distorcida da realidade.
João costuma dizer que quando vai trabalhar passa por um portal, como se fosse para outra dimensão. Ele se esforça para se sentir confortável com a situação, mas confessa que tem dia que é complicado engolir esse sapo que insiste em enroscar em sua garganta.
Mais alguns minutos e ele vê ambulantes vendendo de tudo, amontoados nas calçadas, próximos aos pontos de ônibus. Esses circulam por toda cidade com a mesma desenvoltura. Só que costumam ser tratados de maneira bem diferente. Na periferia, são trabalhadores, pais de família, jovens esforçados, adultos cheios de esperança em dias melhores. Já nas grandes avenidas, onde trabalham como camelôs são ignorados, tachados de informais, de desalentados e até de marginais disfarçados. E o preconceito grita bem alto pra empanar seus sonhos. Mesmo trabalhando e estudando, João também se sente à margem da sociedade, das decisões e do tal merecimento. O cidadão da periferia vive com a sensação de estar sempre fora do lugar.
Pronto. Os prédios modernos da famosa avenida da zona sul aparecem em sua humilde janela. Daqui a pouco, João chega ao trabalho. Depois do ônibus, ainda tem uns 20 minutos de caminhada até a empresa. Ele aproveita para observar o cenário. A primeira coisa que o incomoda é que o asfalto nem chega a sentir os raios do sol, os prédios altos dos dois lados fazem uma sombra assustadora. O que para muitos é beleza, para João é intimidador. Mas se fossem só as construções... e as pessoas? Como estão perdidas em sua rotina! Vivem com os olhos grudados em smartphones, os dedos ávidos digitando comentários em redes sociais, ou a boca quase grudada no aparelho enviando mensagens de voz. Ninguém quer ouvir o outro... por isso, a invenção de Graham Bell foi, aos poucos, jogada para escanteio. Para João, o problema não está em gostar de falar, mas na pouca disposição para ouvir, parece que as pessoas esqueceram a máxima que diz que fomos criados com dois ouvidos e uma boca.
Ele sabe que a tecnologia chegou pra ficar, inclusive na periferia, onde custam para serem instalados postos de saúde e áreas de esporte e lazer, mas antenas de celular tem pra tudo que é lado! O que o incomoda é a forma como as pessoas em geral lidam com os mais variados assuntos nas redes sociais... são todos uns especialistas mimados, têm opinião definitiva sobre tudo e não aceitam serem contrariados. E o que poderia ser um fórum democrático de discussões entre pessoas de várias classes sociais, só acirra as diferenças e o respeito vai ficando de lado. Haja paciência.
Voltando à caminhada de João até a empresa, ele se encanta quando passa por alguns vendedores com seus carrinhos organizados com frutas fatiadas, que dão um colorido especial à calçada. Mas a alegria logo dá lugar à indignação. Quando atende homens de terno e mulheres de tailleur, o tal camelô é só sorrisos, mas quando João se aproxima, quanta diferença! Qual o problema? João tem dinheiro, trabalha... pode muito bem comprar algumas fatias de abacaxi para refrescar sua manhã... mas desiste pela falta de simpatia do ambulante. E ele vai para seu primeiro dia no novo emprego pensando na aberração que é os humildes maltratem os humildes para agradarem o topo da pirâmide. Que sociedade de merda é essa? Ele nunca entendeu quando ouvia pessoas da periferia comentando que porteiros de prédios, atendentes de saúde ou balconistas de padarias finas as tratavam com má vontade.
– Como é triste ver como o ser humano se vende por tão pouco... aceita ser humilhado, aceita humilhar para se encaixar nessa sociedade injusta. Agora fica mais fácil entender como tem gente que tem a coragem de defender o fim da proteção às áreas indígenas... quer um ser humano mais brasileiro que o índio? Se eles não têm direito à terra, quem terá? É triste, mas o Brasil não gosta do Brasil, o brasileiro não respeita o brasileiro... e continua esse salve-se quem puder!
Quando chega em frente à empresa, é cumprimentado efusivamente pelo porteiro e pelo segurança.
– Bom dia, João!
– Bom dia, seu José!
– Bom dia, menino João!
– Bom dia, seu Raimundo!
Sorrindo, ele passa pela catraca e pega o elevador pensando alto. – Parece que ainda há esperança! Como aconselhava minha avó, vou procurar ver a vida com alegria, não vou deixar que a injustiça turve meu coração. Fica tranquila, vó, vou lutar pra um dia enxergar um novo cenário da nossa janela!
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