terça-feira, 5 de novembro de 2019

Prioridade

“É duro perceber que não somos prioridade na vida de ninguém”. A afirmação é de Eliseu, garçom de um entre os milhares de bares que existem em São Paulo. O bar é ponto de encontro de jornalistas, artistas e pessoas com pelo menos dois neurônios funcionando. Não que todos jornalistas e artistas tenham, necessariamente, dois ou mais neurônios funcionando. 

Os frequentadores tratam Eliseu como um simples garçom até a terceira cerveja, quando viram amigos de infância e exigem que ele participe da farra. Sempre ao som de tudo que é gênero musical, de MPB a rock, de pop a reggae, de samba a sertanejo, na verdade, o que gostam mesmo é de agitação. 

O fato é que o garçom é querido pelos frequentadores justamente por ser dedicado ao trabalho, generoso e não ter nenhum tipo de preconceitoSua vida se resume ao bar e aos clientes que, quando sóbrios, importam-se, pelo menos, em cumprimentá-lo. 

Só que um detalhe fez sua rotina mudardono do bar resolveu se aposentar, deixando o negócio sob os cuidados do filho. Um rapaz, formado em administração, que entrou com vontade de mudar o cenário desleixado que o bar ostentava há pelo menos uns 20 anos. Essa nova fase não parecia nada favorável para um homem, como Eliseu, que começou a trabalhar desde a abertura do bar e não percebeu quando balcão, mesas, cadeiras, enfim, tudo se desgastou. 

Passados os primeiros meses, após uma das várias reformas pelas quais o estabelecimento passaria, o garçom começou a sentir os efeitos de ter um novo patrão. Aliás, desde que o rapaz assumiu o negócio, o b
ar não era mais o mesmo. Eram novos tempos e, segundo o garçom, o que prevalecia era a mania dessa nova geração de gourmetizar petiscos e introduzir tecnologia em tudo que veem pela frente. Nem Eliseu nem os frequentadores mais antigos gostaram das mudanças, masaos trancos e barrancos, todos tentavam adaptar-se às novidades e à ausência do antigo dono. 

Eliseu passou a se sentir nostálgico e quando ficava no balcão aguardando o chamado das mesas, lembrava como os dias passavam mais suaves antigamente. Não havia nada de novo, ele chegava, abria o bar, tomava um café rápido com o cozinheiro, o chapeiro, os outros garçons e os balconistas e logo chegavam os primeiros fregueses. De manhã, os preferidos do cardápio eram a média e o pão na chapa! Já no almoço, o mais pedido era o suculento virado à paulista, a especialidade da casa. Conforme o dia avançavachegavam os frequentadores assíduos, muitos tinham mesas marcadas e faziam sempre os mesmos pedidos: porções de calabresa, enroladinhos de salsicha e os clássicos ovos coloridos. E pra ajudar a descer tudo goela abaixo muitas garrafas de cerveja, doses de rabo de galo, de conhaque, de vermute, de batidas. 

Os primeiros a chegar eram os últimos a sair, aliás, a saideira nunca acontecia e era preciso começar a colocar cadeiras viradas sobre as mesas vazias para que os distraídos percebessem que era hora de fechar. Para ele, a coisa mais bizarra era que quase não havia mulheres entre os frequentadores. Eliseu nunca entendeu isso, mas muitos clientes eram tão angustiados que até preferiam não ter beldades para apreciar e ficar imaginando situações que só trariam problemas. Os mais bagunceiros eram casados e não queriam esse tipo de conversa, que certamente chegaria rápido aos ouvidos das respectivas esposas e a vida boa de ir ao bar três vezes por semana poderia ficar ameaçada. “Egoístas”, pensava Eliseu. Onde já se viu... e quem é solteiro não pode ao menos sonhar com a presença feminina? 

E essa implicância com a presença de mulheres era tão grande que a primeira banda contratada não durou uma semana só porque a vocalista era uma loirinha sorridente. Indignado, Eliseu pensava: esses caras são uns fracos mesmo, será que não conseguem olhar pra moça sem ter pensamentos sacanas”? Mas para agradar seus fregueses, o dono contratou uma nova banda, só de homens, e as noites seguiam assim, quase como um clube do Bolinha! 
Mas isso foi antes, com o novo dono, o bar virou um ponto de encontro da cidade e as mulheres passaram a frequentar e, segundo Eliseu, iluminar o ambiente. Mas a rotina mudou e sua sensação de desconforto foi aumentando. 

Um dia, o garçom decidiu que iria se aposentar... não que sentisse a necessidade de fazer outras coisas na vida ou que a idade já limitava seus movimentos. Simplesmente, acordou e, antes de lavar o rosto, disse olhando para o espelho“É duro perceber que não somos prioridade na vida de ninguém”! Só depois refletiu... e sentiu uma lágrima escorrer em seu rosto, marcado pelos anos e pela solidão. E continuou: “seu parar de ir ao bar hoje ninguém vai sentir minha falta! Sei que eles me aturam só porque tenho paciência com os clientes e os clientes se dizem meus amigos só depois da terceira cerveja. O que eu fiz da minha vida”? 

Eliseu lava o rosto, veste uma das poucas roupas que mantém em seu guarda-roupa bagunçado e continua falando sozinho: “é isso que tenho que fazer, sair do bar... ele não é mais minha prioridade... mas e agora? Qual será minha prioridade? E qual será a prioridade dos frequentadores do bar”? Então, ele resolve que antes de pedir demissão, vai tirar isso a limpo! Pega o maço de cigarro, mais amassado que a própria roupa que veste, e sai apressado. 

O dia no bar está calmo, o dono chegará mais tarde, situação ideal para Eliseu filosofar com os frequentadores mais assíduos, que já ocupam suas mesas. O garçom não perde tempo, afinal, o que será que essas pessoas querem da vida? E senta com um senhor de cerca de 80 anos, um dos mais antigos, amigo pessoal do antigo dono. Simpático, ele oferece um gole de bebida para Eliseu, que recusa e vai direto ao assunto. Com os olhos marejados, o senhor abaixa a cabeça e responde: “ah, Eliseu! Minha prioridade sempre foi minha mulher e a família que construímos! Mas as coisas mudam, hoje, sou viúvo e esquecido pelos filhos, de modo que não tenho outra prioridade que não vir ao bar beber uns goles e conversar um pouco, não há tempo para priorizar mais nadaChocado, Eliseu não sabe o que dizer se sente aliviado por ser chamado na mesa ao lado para anotar mais um pedido. 

Minutos depois, ele senta ao lado de um homem que conhece há mais de uma década, sempre com uma garrafa de cerveja e uma porção de calabresa. Deve ter uns 35 anos e ostenta um belo par de olheiras bem estabelecidas! Eliseu se aproxima e é convidado a sentar e mais uma vez não perde tempo e faz a pergunta! O homem pensa, fecha os olhos em uma piscada longa e dispara: “minha prioridade sempre foi o trabalho, mas de uns tempos pra cá passou a ser minha mulher e minha filhinha, por isso,  diminuindo o ritmo de trabalho pra aproveitar melhor a vida. Aliás, Eliseu, a partir do mês que vem, não venho mais. Adoro esse bar, mas vou tirar umas férias, minha ideia é mudar totalmente a rotina”. Com um sorriso sem graça, o garçom agradece. 

Em outra mesa, cumprimenta um senhor com o ar cansado e terno amarrotado. De poucas palavras, ele tem por volta de 60 anos de idade e costuma tomar conhaque. Quando ouve a pergunta do garçom, demora um tempo e responde na lata: “minha prioridade sempre foi manter os amigos, até porque aconteça o que acontecer, eles estão ali pra socorrer, pra animar, pra dar umas risadas... no meu caso, são poucos amigos, muito poucos até... mas são verdadeiros. Não me importo com mais nada nessa vida dura, competitiva e injusta em que vivemos”. O chapeiro grita o nome de Eliseu, que sai apressado, deixando o homem indignado. “Tá vendo, além dos poucos amigos, ninguém me ouve, sempre fico com cara de idiota falando sozinho...” 

Depois de resolver a dúvida sobre o pedido, Eliseu resolve perguntar também ao chapeiroO rapaz, de 30 anos, dá uma risada e fala sem cerimônia: “minha prioridade é não deixar nenhuma mulher me fazer de idiota de novo. Você já conhece minha vida, atualmente não tenho prioridades, já tive, mas virou chifre”. O garçom dá um pigarro e volta para o salão pensando: “tenho que parar de filosofar”! 

Quando pensava em desistir de sua pesquisa, alguém o chama e desperta sua curiosidade. Era o dono do salão de cabeleireiro vizinho ao bar. Um homem alto, careca, de cerca de 55 anos. Despachado e sem muita paciência, foi logo respondendo: “prioridade? Acho que é o filho que adotei agora com meu companheiro, você conhece. Mas não gosto de falar muito com ninguém sobre isso, porque tenho medo do futuro, não gosto de pensar se eu e meu companheiro também seremos sua prioridade, cansei de ver histórias de filhos que abandonam os pais adotivos. Mas não posso negar, hoje, meu marido e meu filhinho são minhas prioridades”. O garçom ouve em silêncio, agradece e vai tomar um ar na porta do bar. 

Sentado na calçada com seu cachorro, um mendigo traz Eliseu para a realidade: “o senhor pode arrumar alguma coisa pra gente comer? Estamos com muita fome e sede... Pode ser qualquer coisa, um resto de lanche, um copo de água”. O garçom, sempre muito generoso, pediu para o homem esperar e depois de alguns minutos, voltou com lanches e duas garrafas grandes de água mineral. O mendigo sorriu animado e agradeceu: “meu cachorro precisa de água,  até caído, coitado”. Eliseu resolve saber daquele homem tão sofrido qual sua prioridade na vida e a resposta foi surpreendente: “ah, senhor! Minha prioridade, desde que passei a cuidar desse cachorrinho, é seu bem-estar. Quero conseguir um dono para adotá-lo, tenho medo que me aconteça alguma coisa. A rua é violenta e nada agradável pra quem não tem nada, por isso, quero arrumar um lar pra ele. Eu me viro, mas o cachorro é muito frágil e merece dias melhores”. O homem pega as sacolas de comida e água que ganhou, levanta com dificuldade, agradece e sai andando sem rumo, seguido pelo cachorrinho. 

Eliseu vai ao banheiro, lava o rosto e quando o dono do bar chega, pede para ir embora mais cedo, o que causa certo estranheza, já que ele não costuma fazer isso, nem quando adoece. 

Em casa, a ideia de se aposentar aumenta. Está na hora”. Deitado em sua cama, só de cueca, Eliseu conclui que o bar não é realmente importante para nenhum daqueles homens com quem conversou. E o garçom, então, só serve pra trazer a cerveja e chamar o táxi. “Vou sair do bar, ainda que ele tenha sido minha prioridade durante todos esses anosSempre soube... não sou prioridade na vida de ninguém. Culpa minha, achei que trabalhar seria o suficiente! Vou sentir falta? Não importa! O que sei é que as pessoas vão se afastar de mim mesmopor isso, prefiro me afastar antes e evitar sofrimento. Prioridade! Na verdade, acho que nem sei direito o que isso significa...”.  

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