quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Troca de olhar entre iguais

Pois é, aconteceu em um parque de diversões, daqueles antigos, onde o carrossel e a roda gigante são as principais atrações. Gabriel desce de seu cavalo todo animadolamentando estar sozinho, queria poder compartilhar com alguém aquele momento de volta à infância. 

 Nada de melancolia. Vamos ao sorvete! 

Está calor, mas um vento suave torna a noite agradável. Ele compra um picolé, senta em um banco próximo e fica olhando as pessoas na fila da roda gigante. 
– GABRIEL! 

Distraído, ele quase deixa o sorvete cair no chão. Olha na direção da voz e se surpreende. 

– Marília? 

– Isso mesmo, da escola de inglês, lembra? 

– Claro! A gente estudava juntos quando tínhamos as pavorosas provas orais! 

– Ahahaha... é verdade! Tudo bem? 

– Tudo ótimo! Aliás, como não estar bem em um parque de diversões... adoro! 

– Eu também! Você está sozinho? Posso sentar do seu lado? 

– Claro, à vontade! Servida? 

– Não... parei um pouco com os doces... 

– Problema de saúde? 

– Não, vergonha na cara mesmo... ahahaha... 

– Eu me lembro que você era uma formiguinha! Não ficava sem um chocolate no intervalo das aulas. 

– Pois é, mas é que estou indo ao nutricionista, resolvi aderir à alimentação saudável. 

– Isso é ótimo! Você sabe que eu só como doce, como esse delicioso sorvete, aos sábados e domingos? Durante a semana, minha sobremesa é fruta. 

– Espero ter essa sua disciplina... estou me achando bem mais disposta comendo coisas saudáveis. 

– Continue firme! 

 Obrigada, apoio é sempre importante. 

– É verdade. 

A conversa flui sem grande entusiasmo, afinal, eles não se veem há séculos. De repente, Marília ouve seu nome e abre um sorriso. 

– Amor, esse é Gabriel, meu colega de inglês. Gabriel, este é meu namorado, Adolfo! 

Quando os olhos de Gabriel encontram os de Adolfo, carrossel, roda gigante, sorvete, Marília e todo o parque perdem a importância. Naquele instante, a única coisa que ambos querem é saber quem é o dono daquele olhar que os hipnotiza. 

Intervalo comercial. Dois velhinhos assistem à cena, na verdade, ao filme. Josué e Gumercinda estão na sala de TV do asilo. 

 Ah! É sempre assim. Quando a história esquenta, os palhaços cortam pra passar comercial... 

– Eu não acredito que você estava gostando, Gumercinda? 

– E por que não gostaria, Josué? Já disse que adoro histórias de amor. 

– História de amor? Tá ficando gagá... esse filme é uma bobagem, onde já se viu ter gays naquela época? 

– Não seja ridículo, Josué. Você quer me convencer que gay é uma invenção da revolução tecnológica? Antes não existia? Por acaso, o Bill Gates ou o Stevie Jobs que inventaram? 

– Ah! Vamos parar de gracinha. No meu tempo não tinha mesmo. 

– Eu vou começar a achar que o gagá da história é você! 

– Por quê? Por acaso, você conhecia gays quando era jovem? 

– Claro que sim! 

– Não vai me dizer que você... 

– Sai pra lá com esse preconceito... não sou gay, mas conheci homens e mulheres... fui amiga de vários.  

– Onde você viveu? 

 Na realidade! 

Josué abaixa a cabeça e a conversa acaba por ali, pelo menos por enquanto. Na televisão, nada do filme voltar, o intervalo se arrasta por mais de cinco minutos. Gumercinda olha de rabo de olho para o colega e fica cismada com seu silêncio repentino. 

– Posso perguntar uma coisa, Josué? 

– Pergunte... 

– Ainda bem que está vivo! Sabe como é, estamos há tanto tempo nesse asilo... 

– Você pode estar há anos, eu estou só há cinco anos. 

– Ah! Desculpe, você teve mais sorte que eu, sua família demorou mais pra enjoar de você. Estou há 10 anos nessa rotina de acorda, toma café, caminha pelo quintal, almoça, faz crochê, toma café da tarde, assiste filme, janta e vai dormir. 

– Não precisa me contar a rotina, faço quase tudo isso todos os dias. 

– Você ficou triste de repente ou é impressão minha? 

– Deve ser impressão sua que eu estava alegre em algum momento, o fato é que sou meio triste mesmo. 

– Não faça isso com você mesmo. Já fomos bem castigados por estarmos aqui... 

– Concordo. Se eu tivesse escolhido viver aqui, talvez estivesse mais feliz. 

– Não pense assim. Seja feliz com você mesmo, é o melhor que temos a fazer... sou prova viva de que essa tática funciona. Procuro não pensar em quem me esqueceu aqui, inclusive, não faço mais questão de visitas. Tenho minhas belas lembranças... e garanto que elas não são com esses ingratos. 

– Admiro sua garra. Mas não sei se tenho força pra ser assim tão bem resolvido. 

– Não pense que não choro às vezes, mas sei que minhas lágrimas não vão mudar nada, então, logo volto à minha rotina. Aprendo um novo ponto de crochê, caminho pulando em uma perna só... ahahaha... estou brincando. Mas o importante é se divertir, a gente nasce pra ser feliz, por isso é que luto a cada minuto por isso. 

– Ah! Quanto ao filme, esqueça tudo que eu disse, gosto de me fazer de ranzinza, como meu pai que gemia cada vez que ia levantar da poltrona e quando minha mãe perguntava se ele estava bem, ria e dizia que era coisa de velho... ahahaha... 

– Ahahaha...  vendo, essas lembranças é que nos fazem bem! Voltando ao filme, que bom que você não é um velho tacanha. 

– Não mesmo. Eu entendo o que aqueles dois sentiram naquele olhar. 

Gumercinda olha com curiosidade e carinho para Josué. 

– Quer me contar alguma coisa? 

Um senhor de andador entra na sala e quando vê Josué desvia o olhar e sai cabisbaixo. 

– Você o conhece? 

Josué tosse e levanta da poltrona como se fosse sufocar. 

– Quer que eu chame a enfermeira. 

– Não, estou melhor. Aquele pastor alemão em forma de enfermeira ia me dar uma meia dúzia de socos nas costas e mandar eu deitar sem jantar. Por favor, hoje é dia de sopa de feijão e eu adoro. 

– Ahahaha... estou gostando de ver seu senso de humor. Mas antes de sua crise de tosse, eu perguntei se conhece aquele senhor que desistiu de entrar aqui. 

– Quer mesmo saber? 

– Eu adoraria saber... se quiser me contar. 

– Eu diria que ele é uma das razões de eu ter sido trazido para cá há cinco anos. 

– Como assim? 

– Um dia, como no filme meus olhos cruzaram com o dele... e minha vida virou de cabeça pra baixo... 

– Mas isso aconteceu faz tempo? 

– Tínhamos a mesma idade do casalzinho que te emocionou no filme... 

– Eu estou entendendo o que eu estou entendendo? 

– Você é uma mulher inteligente, claro que está entendendo... eu era noivo da mãe de meus filhos... 

– Você tem filhos? 

– Nunca foram meus de fato... 

– Explique melhor... 

– Quando conheci esse homem que você viu agora há pouco, descobri que era diferente dos outros rapazes. Eu já tinha percebido alguma coisa, mas achava que era minha timidez. 

– Você se encontrou! Quantos anos tinha? 

– Foi aos 20 anos de idade... como eu disse, estava noivo por imposição de meus pais. Mesmo assim, não consegui controlar o que senti ao olhar dentro dos olhos dele... 

Gumercinda suspira como se estivesse assistindo a um filme. 

– Mas não pense que foi uma linda história... meu pai nos pegou... 

– Ah! Mas onde... 

– Calma, foi na esquina da minha casa, mas foi só um selinho e estávamos de mãos dadas. 

– O que aconteceu depois desse flagra? 

– Não se empolgue... 

– Desculpe, mas adoro histórias de amor. 

– Eu já disse, não se empolgue. Meus pais me levaram para outra cidade... depois me forçaram a fazer a faculdade que quiseram e me fizeram casar com a mulher que escolheram. 

– Agora entendo porque ficou tão cético... 

– Eu era um rapaz muito animado, cheio de planos... 

– Mas espera aí... você teve filhos... 

– Minha esposa sempre soube do que havia acontecido, mas aceitou se casar e ter filhos porque tinha medo de ficar solteirona. Naquela época tinha dessas coisas, né? 

– Pois é, nós mulheres sempre sendo pressionadas a sermos a dona de casa e esposa perfeitas. Ainda bem que hoje diminuiu. Digo diminuiu, porque tem muito idiota ainda circulando pelo mundo. 

– Ahahaha... concordo! Mas enfim tivemos dois filhos, dos quais ela sempre fez questão de me manter afastado. Enquanto meus pais eram vivos, ela ainda disfarçava, mas depois foi ainda mais implacável. E assim que os meninos se formaram na faculdade, ela contou a eles do que o pai deles gostava. Ela fez questão de criar dois preconceituosos, rancorosos e amargos. Fazia cinco anos que eles não nos visitavam, a mãe ia à casa deles sozinha. Quando vi os dois na sala de casa, abri um sorriso... era meu aniversário de 70 anos... sabe qual o presente que eles me deram? 

– Não me diga... 

– Um passaporte para um asilo muito bom. 

– E sua esposa, ficou morando sozinha? 

– Não... na verdade, ela faleceu um pouco antes do meu aniversário. 

– Nem sei o que dizer a você. 

– Não diga nada... 

– Mas por que você fez aqueles comentários maldosos sobre o filme? 

– Fui tão treinado para falar essas coisas em público que acostumei...  

– Não faça isso! Você tem falado com ele, agora que estão morando no mesmo lugar? 

– Foi difícil no começo, ele não queria falar comigo, achava que eu simplesmente tinha o abandonado. Eu soube que passou por dificuldades, teve que sair da cidade também, porque meu pai o perseguiu. 

– Nossa, quando você contou a lembrança de seu pai, imaginei que ele fosse... 

– Também faz parte de meu papel de homem sério, ter lembranças lindas de meu herói. 

– Caramba... 

– Entende agora porque eu disse que naquela época não tinha gays? No fundo, o que eu quis dizer é que gays eram sufocados... está falando com um de 80 anos. 

– Mas você não disse que entrou aqui há cinco anos? 

– Estou há 10 anos em asilo, no primeiro fiquei cinco anos, mas tive alguns problemas de comportamento e meus adorados filhos foram chamados para me transferir... estou aqui há cinco anos! 

– Mas o que você fez pra ter que ser transferido? 

– Bati em um machão que começou a tirar sarro de uma senhora que morava com sua companheira. Não aguentei ver tudo de novo e enchi o cara de porrada... até quebrei minha unha. Mas calma, eu toco violão, por isso, mantenho as unhas da mão direita compridas. 

– Ahahaha... você é uma surpresa! 

– Espero que pra você eu tenha sido uma boa surpresa, porque para meu pai... 

– E sua mãe? 

– Chegou a me dizer uma vez que me amava, mas que meu pai estava querendo me proteger. Fiquei muito triste, mas entendo que pra ela era difícil bater de frente com o marido. 

– Nós mulheres já sofremos horrores nessa sociedade machista... infelizmente, ainda hoje sofremos. 

– Nem me diga... em pelo século 21, mulheres e gays continuam apanhando, morrendo, sendo humilhados, enfim, agora não penso em mais nada, apenas em viver dias calmos, tocar meu violão de vez em quando e, agora, rir com você, amiga. Posso chamá-la de amiga, Gumercinda! 

– Claro! Acabo de ganhar mais um alegre amigo para minha lista! E alegre em todos os sentidos... ahahaha... adoro! 

– Mas não se empolgue muito, sou um velho e ponto. 

– Agora que somos amigos, posso fazer uma pergunta? 

– Aquele senhor que entrou na sala... 

– Estamos voltando a nos conhecer... na verdade, tivemos uma cena muito parecida com a do filme... pena que a mulher que estava com ele não gostou e deu com a bengalada nas costas dele com tanta força que provocou sei lá o que na coluna. Agora ele vai ter que usar andador por alguns meses. 

– Ahahaha... desculpe, você contou de um jeito que achei engraçado. Mas se vocês têm uma história dessas, porque ele saiu cabisbaixo? 

– Combinamos não dar pinta na frente de desconhecidos... não se preocupe que da próxima vez que nos encontrarmos e você estiver presente, não vamos disfarçar. 

– Eu não acredito que a cena que protagonizaram foi a mesma do filme! 

– Menos glamourosa como já contei... a fulana percebeu e agiu mais rápido que a personagem do filme. 

Uma enfermeira animada entra falando alto na sala e interrompe a conversa. 

– Hora do jantar. Chega de televisão por hoje, vocês não podem passar tanto tempo assim em frente a essa máquina de fazer bobo. Quero vocês exercitando o cérebro, lendo, fazendo palavras cruzadas. E, por favor, conversem de assuntos triviais e animados, nada de tristeza aqui. Já disse que tudo fica melhor quando a gente valoriza a beleza da vida. 

– Fique tranquilo, Josué. Aqui a troca de olhares é permitida! 

– Só preciso evitar pessoas de bengala por perto. 

Gumercinda cai na gargalhada. E os dois seguem a enfermeira, rumo à deliciosa sopa de feijão. 

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