Escrever um conto. Pois é, Murilo precisa escrever mais um conto para completar seu novo livro. Já telefonaram da editora umas 10 vezes e ele continua sem ter ideia sequer sobre qual assunto abordar. Só um, diz o homem nervoso ao telefone. E o escritor pensa: “como se fosse fácil contar uma história redondinha, assim de supetão”!
Minutos depois de desligar o telefone, Murilo começa a falar em alto e bom som para acordar as ideias: “preciso de um assunto! Ou de um personagem ou de uma situação. Ah! Preciso começar logo. Vou escrever qualquer coisa pra estimular a imaginação”!
Sozinho em casa, ele comemora aquele momento especial, em que nada nem ninguém pode atrapalhá-lo. O problema é que nem sempre esse momento que parece ideal é de fato produtivo. Várias vezes, Murilo escreveu textos extremamente elogiados em meio ao caos urbano, à bagunça familiar, levando o cachorro para passear. Em outros casos, escreveu em pedaços de papel em pé no metrô lotado ou em guardanapos em meio à arruaça feita pelos amigos, durante os encontros das quintas-feiras.
Sozinho em casa, ele comemora aquele momento especial, em que nada nem ninguém pode atrapalhá-lo. O problema é que nem sempre esse momento que parece ideal é de fato produtivo. Várias vezes, Murilo escreveu textos extremamente elogiados em meio ao caos urbano, à bagunça familiar, levando o cachorro para passear. Em outros casos, escreveu em pedaços de papel em pé no metrô lotado ou em guardanapos em meio à arruaça feita pelos amigos, durante os encontros das quintas-feiras.
Enfim, ele sabe que a inspiração pode aparecer em qualquer situação e nem sempre as chamadas condições ideais são as escolhidas. A inspiração é indomável, vive pairando por aí e escolhe a quem quer brindar, seja onde for. Portanto, nada de regras, Murilo! O negócio é escrever e escrever até perceber que o que está sendo escrito é o texto que você precisava escrever. Assim, simples... simplesmente complexo... ahahaha!
Ele segue para o segundo parágrafo sem que a ideia a ser desenvolvida apareça. Mas só de escrever o que vem à cabeça, Murilo já se anima. É preciso colocar o pensamento em movimento, só assim pra despertar a história que precisa ser contada.
Os minutos passam apressados, os dedos deslizam alegres pelo teclado. Os olhos, fixos na tela, estão ávidos por ler mais uma linha e, finalmente, encontrar o fio da meada. E mesmo contra tudo que acredita, Murilo continua tentando. Para ele, escrever é algo muito mais sagrado do que simplesmente teclar desesperadamente em um computador, pressionado pelos prazos insensíveis.
Ah! Mas o fato é que ele gosta de se sentir desafiado. Por isso, nunca define a pressão como algo totalmente negativo, ela pode também resultar em trabalhos muito bons, até mesmo premiados. Só que nesse momento, o que mais o irrita é que o livro em questão já poderia estar fechado se o editor não cismasse que queria mais um. Ele, inclusive, já explicou pra criatura que nenhum dos outros textos que tem arquivados combina com a atmosfera do livro que preparou com todo carinho para seus leitores. Mas o homem exige mais um e pronto. Só resta concentrar-se na tarefa e acabar logo com essa agonia.
Murilo dá um suspiro e vai até a cozinha pegar mais um café, coloca duas colheres de açúcar, aproveitando que não tem nenhuma patrulha. Em seu caminho tenso de volta ao computador, só se detém para fazer um carinho no cachorro, que dorme sem se importar com nada. Mas eis que sente um click, olha de novo para o cachorro em seu sono admirável, começa a rir e quase grita: “é isso”!
Dá um gole no café e começa a digitar sem parar. Em seu conto, o homem chega cansado depois de um dia atribulado de trabalho e encontra seu cachorro deitado atrás da porta, dormindo. Mas ele não age como os cachorros normais, pulando, lambendo, latindo quando seu dono chega em casa. Seu quatro patas até olha quem o incomoda e logo volta a dormir. Isso sempre o intrigou. E o mais engraçado é que só ele ficava intrigado com o comportamento incomum do cachorro. Sua mulher e seus filhos nem ligavam para a falta de amor no coração do animal de estimação.
Mas naquele dia, ele ficou ainda mais encafifado... nem depois do jantar, ele se dignou a fazer companhia à família. Já era tarde da noite e o homem continuava ali, observando o cachorro, deitado em sua caminha macia, roncando e sonhando sabe-se lá com que! E ele, cansado pela vida estressante que levava, achava um absurdo que ao chegar em casa não tinha carinho nem do cachorro... e se perguntava: “será que o mundo está acabando? Ou será que deixei de ser importante até mesmo para meu cachorro? Nunca vi isso, já perguntei no escritório e todos contam as mesmas histórias de relacionamento amável e muito próximo com seus animais de estimação, então, por que comigo é diferente”? Antes de dormir, tentou atraí-lo com biscoitos, mas nada... o cachorro, no máximo, dava uma espreguiçada e voltava a dormir quietinho, ignorando o dono e parece que a humanidade inteira.
Ainda tentando entender qual o problema entre ele e seu cachorro, ele resolve dormir, aliás, nem viu a mulher e os filhos irem pra cama, tão ensimesmado que estava. Depois de muito custo, pegou no sono. E só aí descobriu o que estava acontecendo... e o buraco era realmente muito mais embaixo. Ele teve um sonho altamente esclarecedor, em que seu cachorro era personagem central.
No tal sonho, ele chegava em casa como todos os dias, mas não encontrava a esposa e os filhos. À sua espera, só o cachorro, sentado no sofá, feito gente, segurando o controle remoto da televisão, que desligou assim que o dono entrou. Assustado com a cena insólita, ele chamou pela mulher, mas não teve resposta... O cachorro balançou a cabeça e com uma voz rouca pediu que se sentasse. Sem entender nada, ele sentou e o que aconteceu a seguir foi uma incrível análise de sua vida. No meio do sonho, ele olhava para os lados, tentando entender o que estava acontecendo e se surpreendia com a eloquência de seu animal de estimação. Em resumo, o cachorro alertava o dono que se não mudasse de conduta, perderia a família... sua mulher e seus filhos não aguentavam mais a rotina estressante, sentiam falta dele. As crianças choravam sua ausência constante e uma tristeza imensa invadia a casa. Inclusive, ouvia a esposa falar ao telefone que não aguentava mais ser ignorada pelo homem que amava. Tão gentil e companheiro, seu marido havia se tornado um estranho, frio e insensível.
Diante dessas revelações, começou a pensar em sua rotina. Arrasado, concluiu que o cachorro tinha razão em tudo que dizia, ele havia se distanciado da família. Simplesmente, porque passou a pensar só no dinheiro que queria ganhar a mais... e cada vez mais... para dar uma vida confortável a todos. O cachorro o interrompeu com uma risada, dizendo que até mesmo ele, seu bicho de estimação, passou a ignorá-lo de uns tempos para cá. Foi a forma que encontrou de chamar sua atenção para o fato de ter se tornado um estranho em sua própria casa, trocando as doces horas de carinho com a esposa e os filhos pelo excesso de trabalho. E pra quê? Se o que eles precisam é de você!
Ainda tonto, ele permanece calado, com os olhos cheios de lágrimas. O cachorro dá um gole no chá, coloca o controle remoto sobre a mesa de centro e conclui: “só aviso uma coisa, se ela e as crianças forem embora, vou junto! Pense bem, é isso mesmo que você quer”? Ainda o encarando, o cachorro volta para a caminha, onde, em poucos segundos, pega no sono.
Nesse instante, ele acorda assustado, suado e com uma sede desértica. Olha para o lado, vê sua esposa dormindo e sai da cama devagar. Vai até a sala e olha o cachorro dormindo. Senta no sofá tentando lembrar cada detalhe de seu sonho... E adormece lá mesmo. De manhã, é acordado por sua esposa, que está assustada, afinal, ele já está atrasado. Mas ele a puxa e a abraça, dizendo em seu ouvido: “não vou trabalhar, quero ficar com você... com as crianças... com nosso cachorro”. A mulher o abraça, as crianças aparecem correndo, abrem um sorriso iluminado quando veem o pai e a mãe abraçados e se jogam no colo dos dois. Em meio à alegria, ele surpreende a família ao pegar o cachorro no colo e dizer: “obrigado por abrir meus olhos, amigo! Vou ser grato a você pelo resto da vida”. E, por um momento, parece escutar a voz rouca de seu sonho: “imagina, brother... tamo junto”!
Murilo dá um suspiro, bate as mãos na mesa e grita: “feito! O conto está pronto e graças a meu amigo de quatro patas”. Ele chama e o cachorro pula em suas pernas, pedindo carinho. O escritor deixa a mesa de trabalho e corre para o quintal: “e não esqueça, meu querido, estarei sempre aqui para brincarmos juntos, não quero ser mais um desses sem noção... trabalhar é bom, mas viver nossos amores é muito melhor”!
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