O dia está meio nublado, abafado e agora começa uma chuvinha que pede pelo menos uma capa... e olha que tem gente que tem estilo até pra isso. Acabo de ver um homem, de seus 60 anos, com uma capa de chuva do Batman... sim... com o símbolo estampado nas costas e o capuz com as orelhas do famoso morcego. A capa é transparente, por baixo ele veste terno e o melhor de tudo é que ninguém em volta se importa com isso. Talvez porque as pessoas não estejam de folga como eu aqui observando a correria da manhã ou porque tem dia que bate uma maturidade no povo e fica cada um na sua mesmo.
O fato é que estou sentada nessa cafeteria, vendo a chuva e o entra e sai de pessoas, que brincam com as atendentes e pedem “aquele café”, combustível pra começar bem o dia e se preparar para o trabalho ou a falta dele.
E, de repente, uma cena lá fora chama minha atenção e eu me transporto para a chuva novamente. Atravessando a rua, com um guarda-chuva imenso amarelo, uma avó de bengala e seu neto com alargador de orelha, topete e um enorme cuidado ao conduzir a velhinha que chega a emocionar.
Quem são eles? Na realidade, não sei. Mas na minha imaginação, são dona Emília e Cássio. Uma avó cujo único limite é a bendita bengala. Uma senhora que enfrentou e enfrenta até hoje os membros de sua família que adoram destilar boas doses de hipocrisia, intolerância e preconceito. E mesmo assim continua firme, fazendo o que quer, a hora que quer, com quem quer. É viúva, teve um casamento absolutamente feliz, mas se recusa a envelhecer triste... sempre diz que cada um tem sua caminhada e que seu amado continua sempre com ela, esperando-a na hora certa! Ah! Deve ter sido uma bela história de amor, mas aqui o assunto é outro e como ela mesma diz: a vida é presente... viva agora!
O neto é seu melhor companheiro, mas sem pressão. Cássio tem sua vida agitada, sua rotina, seus desejos e só deixa tudo de lado para encontrar a avó, às quintas-feiras, faça chuva ou faça sol. Esse é o trato que fizeram quando ele tinha seis anos de idade: aconteça o que acontecer durante a semana, quinta nos encontramos, sem desculpas. E o que começou como uma forma de fazer a criança parar de chorar na porta da escola, virou agenda da vida dos dois! Os anos foram passando e as quintas-feiras continuam firmes e fortes, como o laço de carinho que os une.
Embora o começo do encontro semanal seja sempre o mesmo: café, pão de queijo e passeio na orla, a programação é extensa e surpreendente. Às vezes, almoço em hotel cinco estrelas, às vezes, cachorro-quente na praia. As tardes já tiveram duas sessões de cinema, seguidas de discussão filosófica na livraria; aulas de dança de salão; e até trabalho voluntário escrevendo cartas na rodoviária. Inclusive, dona Emília mantém boa caligrafia desde quando Cássio aprendeu a escrever. E, assim, quando o neto completou quinze anos, comemoraram realizando o sonho de ajudar quem não sabe escrever a mandar cartas de amor, de saudade, enfim, ligar as pessoas usando a delicada dupla papel e caneta.
O amor pela leitura é outra faceta da dupla. No começo, Monteiro Lobato, Ruth Rocha... conforme o neto ia crescendo, a avó incluía nesse cardápio Machado de Assis, Jorge Amado, clássicos mundiais como Dom Quixote, diversas obras de Shakespeare, sem falar nos dramaturgos brasileiros e nos filósofos de todas as vertentes. Enfim, o negócio de dona Emília era doutrinar o neto. Nas palavras dela, o jovem precisa ser incentivado e instigado a pensar, discutir e formar seu pensamento, mas precisa de um Norte e “o de Cássio já estou dando. Preparar meu neto para vida é minha alegria”!
E assim que chegam do outro lado da rua, como num passe de mágica, a senhora e o rapaz deixam de ser meus personagens e voltam à realidade, onde não os conheço. Mas tudo bem, afinal, vida é presente! Presente, aliás, como dona Emília e Cássio foram pra mim nesse dia de garoa no litoral.
Ah! Agora vou aceitar o pedaço de bolo que a balconista da cafeteria me ofereceu mais cedo. Faço um sinal e lá vem o pratinho com uma fatia, massa e cobertura de chocolate... parece dos bons, aposto que aqueles dois adorariam me acompanhar nessa. Mas acho que eles preferem sorvete. E tem que ser de massa... e tem que ser no copinho... e tem que ser de creme com cobertura crocante... assim Cássio decidiu quando tinha oito anos e até hoje avó e neto saboreiam sua sobremesa preferida... opa, voltaram? Será que eles ainda estão atravessando a rua?
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